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sábado, 18 de janeiro de 2020

Do Jornal O Globo de hoje(18-01-2020)- Romper a bolha - de Frei Beto


Não guardo a menor saudade do ano que passou. Ano de diatribes governamentais, mentiras oficiais, renúncia à soberania nacional. Carrego, contudo, muitas perguntas. Como explicar a inércia de um povo vilipendiado a cada dia em seus direitos? Onde e quando nos roubaram a voz e a vez? Por que a nossa indignação não se traduz em protesto coletivo?
Há uma profunda ferida na triste alma do Brasil. Perdemos o senso de humor (alguém conhece uma piada nova?), e ainda que uma sátira ouse romper as trevas, ela é recebida com coquetéis Molotov e o silêncio cúmplice das autoridades.

Por que esse grito parado no ar? Parece que tudo está em suspenso: a democracia, os direitos humanos, a liberdade. Eis o teatro macabro no qual cotidianamente se desenrola a tragédia cujos atores e atrizes riem de si mesmos, enquanto a plateia, atônita, não sabe como estancar o sangue das vítimas de tantos sacrifícios ou repartir o pão para aplacar o sofrimento dos famintos. As ruas de meu país se tornaram intransitáveis. Os carros se assemelham a feras ensandecidas, convencidas de que a estridência de suas buzinas tem o poder de abrir caminho a ferro e fogo. Nas calçadas, reduzidas a sarjetas, corpos maltrapilhos, abatidos por álcool e drogas, retratam a ontológica injustiça do sistema que nos engloba. Ocorre que a maioria, encurvada pela desesperança, enxerga árvores sem perceber a floresta. A ideia de sistema soa demasiadamente abstrata. É dor sem causa, borboleta sem lagarta, luz sem sol. E o que ressoa aos ouvidos é a narrativa do poder, à qual se agarra como o ébrio à sua garrafa. O espectro do desemprego pobretariza multidões, que aceitam menores salários e menos direitos, e neutraliza os que se uberizam ou mendigam uma ocupação.

Os que percebem que os primeiros ratos mortos são prenúncios de peste permanecem exilados em suas bolhas solipsistas, onde privatizam a indignação e o protesto. Adianta? Duvido, porque adulteraram a linguagem e baniram a verdade de seu lar, filha das núpcias indeléveis entre a inteligência e o real. Agora ela vaga pelos buracos negros da insensatez, enquanto muitos tentam se proteger enclausurados no dialeto de sua tribo virtual, sem que a tribo vizinha consiga decifrar ferocidades semânticas. Na cidade de surdos, uivam nas janelas sem que ninguém dê importância. Você fala em flores, eles entendem feras; fala em amar, eles entendem armar; fala em cultura, eles entendem censura.

Não nos resta outra saída senão deixar de ser prisioneiros virtuais, romper a bolha e dar as mãos a todos que estão dispostos a avançar sobre ruas para repletar avenidas. E não basta clamar “Ele não”. Aos protestos devem se sobrepor propostas. Eis o único modo de evitar que os fantasmas do medo se reencarnem na figura anômala do terror. Navegar é preciso! Mas na direção contrária à de Ulisses. E deixar que a tripulação fique de ouvidos e olhos abertos para descobrir que as sereias não passam de monstros necrófilos cujos urros pretendem nos ensurdecer e cegar para não descobrirmos que a rota traçada por eles nos conduzem às profundezas do Hades. Na segunda metade da década de 1970, assentei-me em uma favela capixaba. Fui ao norte do estado visitar o que restava da antiga Vila de Itaúnas. Nos vinte anos anteriores a ação predatória da cobiça antiambientalista havia destruído a vegetação que detinha o avanço da areia da praia sobre a vila. Todas as manhãs, as mulheres varriam a areia acumulada no vão das portas, soprada pela força do vento. No dia seguinte, mais areia e o trabalho insano de tentar contê-la. Até que as dunas cobriram por completo a vila. Restou apenas o cume da torre da igreja. Como ingênuos habitantes de Itaúnas, temos varrido a soleira da porta sem ainda nos convencer de que somente ações mais determinantes serão capazes de conter o dilúvio.

sábado, 4 de janeiro de 2020

Entrar no ano novo - Frei Beto - Hoje - (04-01-2020) no Globo


Inicia-se mais um ano. Hora de relembrar, examinar, avaliar. e fazer propósitos para os próximos 12 meses: comer menos, fazer exercícios, ser mais generoso, esbanjar elogios, votar nas eleições municipais em quem realmente se dedique a assegurar qualidade de vida à população...Dentro do coração latejam anseios de vida e mundo melhores. Como alcançá-los? Quem sou eu para dar conselhos! Conheço o tamanho de minhas falhas, a dimensão de meus erros. Nem por isso deixo de partilhar com os leitores meia dúzia de opiniões que, se carecem de fundamento, ao menos aquecem o debate. Saudade. Vocábulo português sem similar em muitos idiomas. De que temos saudades? Do amor perdido? Da infância feliz? Do parente falecido? Sim, mas sobretudo de nós mesmos.
Talvez o fim e o início do ano sejam os momentos em que mais aflora a disposição de fazer exame de consciência. Saudade de estar exilado do que realmente sou. Tem saudade de si quem anda exilado do que realmente é. Corre-se o risco de ter como epitáfio o verso de Fernando Pessoa: “Fui o que não sou”. Não quero ser o que não sou. Mas admito a pertinência das palavras do apóstolo Paulo: “Faço o que não aprovo; pois o que aprovo não faço” (Carta aos Romanos 7,15).
É hora de pagar o nosso resgate. Livrar-nos da condição de refém insatisfeito de nossos próprios vícios e incoerências. Resgatar-se é empreender árdua jornada rumo à própria interioridade. Não apenas como fez DeMaistre dentro do próprio quarto. Mas ir aonde reside a verdadeira identidade - ao mais profundo de si. Como fazê-lo? O processo psicanalítico é, nesse caso, de grande valia. Entretanto, implica recursos nem sempre ao alcance de todos. Faço, pois, singela proposta: meditar. Eis um caminho viável a todos. Bastam disposição e tempo. Vontade e método. Lido há anos com grupos de oração. Com eles aprendo lições importantes concernentes à meditação. Não existe um único método. São tantos quanto os meditantes. Cada pessoa deve descobrir e desenvolver o método que lhe convém: sentado ou andando, de olhos fechados ou entreabertos, ao acordar ou no fim da tarde, em silêncio ou ao som de uma suave melodia, concentrado no mantra ou na respiração etc.
Um detalhe é importante: reservar tempo à meditação, assim como se faz à refeição, ao sono e ao banho. Sem criar na agenda espaço específico para isso, fica difícil. É preciso ter disposição. Saber “perder tempo”. Livrar-se da ideia utilitarista de que “tempo é dinheiro”. Mergulhar, por um momento, no saudável espaço da ociosidade espiritual. Disposição significa disciplina. Não se medita sem se dar tempo.
Aos iniciantes recomenda-se marcar no relógio um tempo mínimo de meditação. Sugiro 20 minutos. Enquanto o despertador não soar, não mude apostura escolhida para meditar. Aos poucos, aumenta-se o tempo, na mesma proporção que se consegue esvaziar a mente e centrar a atenção no plexo solar, embebendo-o da presença inefável de Deus. Ou do Vazio.

O que fazer para melhorar o mundo? Há pequenos gestos, como observar normas de lixo seletivo, economizar água e energia, plantar árvores e defendera preservação do meio ambiente. Há gestos mais amplos, como associar-se a um esforço comunitário, seja em igreja, sindicato, clube, ONG ou iniciativa voltada à responsabilidade social. Vínculos de solidariedade se estreitam através de trabalhos voluntários, lutas partidárias, pressões sobre o poder público ou denúncias de abusos de empresas, como anúncios lesivos às crianças ou produtos com altas doses de substâncias prejudiciais à saúde, como embutidos, transgênicos e placas de amianto. O mundo é o que de
le fazemos. E nele interferimos por participação ou omissão. Não existe neutralidade. Isso vale para a nossa saúde pessoal e coletiva. A indiferença não faz a diferença.

O Globo 4 Jan 2020 - FREI BETTO sociedade@oglobo.com.br

sábado, 21 de dezembro de 2019

Decretos de Natal - O Globo de 21 Dezembro de 2019 - FREI BETTO


Decretos de Natal - O Globo  de 21 Dezembro de  2019 - FREI BETTO

Fica decretado que, neste Natal, em vez de dar presentes, nos faremos presentes junto aos famintos, carentes e excluídos. Papai Noel que nos desculpe, mas lacradas as chaminés, abriremos corações e portas à chegada salvífica do Menino Jesus.
Por trazer a muitos mais constrangimentos do que alegrias, fica decretado que o Natal não mais nos travestirá no que não somos: neste verão, arrancaremos da árvore de Natal todos os algodões de falsas neves; trocaremos nozes e castanhas por frutas tropicais; renas e trenós por carroças repletas de alimentos não perecíveis; e, se algum Papai Noel sobrar por aí, que apareça de bermuda e chinelos. Fica decretado que, cartas de crianças, só as endereçadas ao Menino Jesus, como a do Pedrinho, que escreveu convencido de que Caim e Abel não teriam brigado se dormissem em quartos separados; propôs ao Criador ninguém mais nascer nem morrer, e todos nós vivermos para sempre; e, ao ver o presépio, prometeu enviar seu agasalho ao filho desnudo de Maria e José.
Fica decretado que as crianças, em vez de brinquedos e bolas, pedirão bênçãos e graças, abrindo seus corações para destinar aos pobres todo o supérfluo que entulha armários e gavetas. A sobra de um é a necessidade de outro, e quem reparte bens partilha Deus. Fica decretado que, pelo menos um dia, desligaremos toda a parafernália eletrônica, inclusive o telefone celular e, recolhidos à solidão, faremos uma viagem ao interior de nosso espírito, lá onde habita Aquele que, distinto de nós, funda a nossa verdadeira identidade. Entregues à meditação, fecharemos os olhos para ver melhor. Fica decretado que, despidas de pudores, as famílias farão ao menos um momento de oração, lerão um texto bíblico, agradecerão ao Pai e Mãe de Amor o dom da vida, as alegrias do ano que finda, e até dores que exacerbam a emoção sem que se possa entender com a razão. Finita, avida é um rio que sabetero mar como destino, mas jamais quantas curvas, cachoeiras e pedras haverá de encontrar em seu percurso. Fica decretado que arrancaremos a espada das mãos de Herodes e nenhuma criança será mais surrada ou humilhada, nem condenada ao trabalho precoce e à violência sexual. Todas terão direito à ternura e à alegria, à saúde e à escola, ao pão e à paz, ao sonho e à beleza. Como Deus não tem religião, fica decretado que nenhum fiel considerará a sua mais perfeita que a do outro, nem fará rastejar a sua língua, qual serpente venenosa, nas trilhas da injúria e da perfídia. O Menino do presépio veio para todos, indistintamente, e não há como professar que é “Pai Nosso” se o pão também não for nosso, mas privilégio da minoria abastada. Fica decretado que toda dieta se reverterá em benefício do prato vazio de quem tem fome, eque ninguém dará ao outro um presente embrulhado em bajulação ou escusas intenções. O tem pogas toem fazer laços será muito inferiora o dedicado adar abraços. Fica decretado que as mesas de Natal estarão cobertas de afeto e, dispostos a renascer com o Menino, trataremos de sepultar iras e invejas, amarguras e ambições desmedidas, para que o nosso coração seja acolhedor como a manjedoura de Belém. Fica decreta doque, como os reis magos, daremos todos um voto de confiança à esperança, para que ela conduza este paí sadias melhores. Não buscaremos o nosso próprio interesse, mas o da maioria, sobretudo o dos que, à semelhança de José e Maria, foram excluídos da cidade e, co mouma família sem-terra, obrigados a ocupa rum pasto, onde nasceu A queleque, segundo sua mãe ,“despediu os ricos comas mãos vazias e encheu de bens os famintos” e, no Sermão da Montanha, exaltou como “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça”.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Novos perfis de família - FAMÍLIA, onde a vida começa e o amor nunca termina...

Frei Betto é um grande escritor, leio tudo que ele escreve nos jornais,  já li alguns dos seus livros, e achei bastante esclarecedor a reflexão que ele faz acerca da família e seu posicionamento frente as configurações que esta vem assumindo nos dias atuais em nossa sociedade. Como ele mesmo diz,  para quem foi criado sob a imagem da Sagrada Família é muito difícil acolher outras formas de relações afetivas. De qualquer forma o texto é muito consistente e está embasado na palavra de Deus e nos  ajuda a construir uma aproximação com esta polêmica, por que não tem como aceitarmos preconceitos mais na sociedade de direitos.
Novos perfis de família
ESCRITO POR FREI BETTO   
Maria Antônia, bebê gaúcho, tem duas mães, um pai, seis avós! Nascida em Santa Maria, em setembro de 2014, o juiz Rafael Cunha autorizou seu registro de nascimento.

Os pais são Fernanda, Mariani e Luis Guilherme, que engravidou uma das moças e fez questão de ter seu nome na certidão de nascimento. O juiz reconheceu legalmente que Maria Antônia nasceu em um “ninho multicomposto”.

Desde que resolução do Conselho Federal de Medicina, em 2013, permitiu a utilização de técnicas de fecundação “in vitro” por casais homoafetivos, cresceu no Brasil o número de crianças registradas em nome de dois pais ou duas mães.

O preconceito ainda impede que muitos reconheçam o óbvio: o perfil da família já não se restringe ao da relação monogâmica heterossexual.

Quem melhor percebe essa mutação é o papa Francisco que, em vez de se fingir de cego, como papas anteriores frente aos fenômenos da pós-modernidade, convocou um sínodo para debater o tema. Precedido por reunião extraordinária em outubro de 2014, o Sínodo da Família terá lugar em Roma, em outubro deste ano.

No questionário remetido a todas as dioceses do mundo, o papa pergunta como os católicos encaram casais recasados, a homossexualidade e outros temas considerados polêmicos no interior da Igreja. Francisco quis ouvir as bases, num gesto inédito de democratização da instituição eclesiástica.

É o fim da família? A família é uma estrutura cultural, não natural. Tal como a conhecemos hoje, existe há apenas meio milênio. Aliás, hoje se multiplicam as famílias monoparentais, cujo “chefe” é a mãe. Em comunidades indígenas, a qualidade de proteção e afeto às crianças faz a todos nós, “civilizados”, corar de vergonha.


Para quem, como eu, foi educado no catolicismo à luz de estampas da Sagrada Família, não é fácil acolher os novos perfis de relações afetivas. Porém, ao abrir o Evangelho, nos deparamos com algo distinto do modelo devocional: o jovem Jesus que se desgarra do cuidado dos pais e abandona a caravana de peregrinos; o pregador ambulante que não merece a credibilidade de seus irmãos (João 7,5) e a família o tem na conta de “louco” (Marcos 3,21-31); o filho que parece rejeitar a própria família: “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos?” (Mateus 12, 48).

Quando exclamaram a Jesus “Felizes as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram”, ele não desmentiu, mas assinalou a diferença: “Felizes, antes, os que ouvem a palavra de Deus e a observam” (Lucas 11, 27-28).

Jesus enfatizou que não são os laços de sangue que mais aproximam as pessoas, e sim o projeto comum que elas assumem.

Projetos alternativos criam conflitos. Jesus chegou a falar em “odiar” a própria família (Lucas 14, 26). O verbo grego miseo (=odiar) pode ser traduzido por “amar menos”: “Se alguém quer me seguir e não prefere a mim mais que a seu pai e sua mãe...”.

Frente ao modelo de família-gueto, centrada no umbigo de seus membros e avessa a estranhos e necessitados, Jesus propôs um modelo de família aberta, centrada no afeto, na gratuidade e na abertura ao próximo.

A família do século XXI já não será apenas a que possui em comum características biológicas, e sim a que o amor aproxima e une pessoas comprometidas com um projeto comum de vida, que estabelece entre elas profundas relações de intimidade e reciprocidade.

E há que lembrar que, em sua recente visita à Ásia, o papa Francisco rogou aos fiéis católicos que evitem “ser como coelhos”, procriando irresponsavelmente. Um sinal de que os métodos contraceptivos, como o uso do preservativo, serão afinal aceitos pela Igreja Católica?