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terça-feira, 6 de novembro de 2018

Pequeno Mapa do Tempo - Belchior

Pequeno Mapa do Tempo: o medo como geografia da alma e da nação

Um pouco de medo é natural, até necessário — é ele que ativa os instintos de proteção e preservação da vida. Mas quando o medo extrapola os limites da prudência e se instala como estado permanente, ele deixa de ser um sinal de alerta para se tornar um veneno silencioso. É esse medo paralisante, que isola, silencia e adoece, que Belchior magistralmente denuncia em Pequeno Mapa do Tempo, uma de suas obras mais densas e simbólicas.

Composta em 1977, ainda sob o peso sombrio da ditadura militar no Brasil, a canção é um grito poético contra o controle dos corpos e das consciências. Belchior não apenas nomeia o medo — ele o cartografa. O medo atravessa geografias, cidades e estados brasileiros, como se o país inteiro estivesse submerso em um território de vigilância, censura e repressão. Em versos cortantes, o compositor costura o medo íntimo e o coletivo, o medo da solidão e da morte, o medo político e existencial.

O título Pequeno Mapa do Tempo é um convite à reflexão: que tempo é esse que se pode mapear pelo medo? Um tempo escuro, onde placas tortas indicam contramãos históricas e fantasmas escondidos nos porões da memória ainda nos assombram.

Esta canção é um mapa, sim — mas não apenas das cidades mencionadas. É o mapa afetivo de uma geração marcada pela opressão. Belchior, com sua genialidade poética, nos entrega não só um protesto, mas uma convocação: que saibamos decifrar nossos próprios medos e, sobretudo, não deixemos que eles nos calem.

Pense nisso: o medo que hoje nos habita tem a ver com aquele tempo? O que mudou? O que permanece?
E por que, ainda hoje, tantos têm medo de cantar a liberdade?

Deodato Gomes Costa




Pequeno Mapa do Tempo
Belchior

Eu tenho medo e medo está por fora
O medo anda por dentro do teu coração
Eu tenho medo de que chegue a hora
Em que eu precise entrar no avião

Eu tenho medo de abrir a porta
Que dá pro sertão da minha solidão
Apertar o botão: cidade morta
Placa torta indicando a contramão
Faca de ponta e meu punhal que corta
E o fantasma escondido no porão

Medo, medo. medo, medo, medo, medo

Eu tenho medo que Belo Horizonte
Eu tenho medo que Minas Gerais
Eu tenho medo que Natal, Vitória
Eu tenho medo Goiânia, Goiás

Eu tenho medo Salvador, Bahia
Eu tenho medo Belém, Belém do Pará
Eu tenho medo pai, filho, Espírito Santo, São Paulo
Eu tenho medo eu tenho C eu digo A

Eu tenho medo um Rio, um Porto Alegre, um Recife
Eu tenho medo Paraíba, medo Paranapá
Eu tenho medo Estrela do Norte, paixão, morte é certeza
Medo Fortaleza, medo Ceará

Medo, medo. medo, medo, medo, medo

Eu tenho medo e já aconteceu
Eu tenho medo e inda está por vir
Morre o meu medo e isto não é segredo

Eu mando buscar outro lá no Piauí
Medo, o meu boi morreu, o que será de mim?
Manda buscar outro, maninha, no Piauí

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