A sensação é estranha,
quase surreal. Assistindo a um filme, uma novela ou alguma série produzida
antes da pandemia, acontece frequentemente de o espectador tomar um susto ao
ver as pessoas se abraçando, apertando as mãos e se beijando sem preocupações.
Condenados pelas novas normas de distanciamento social, esses gestos de afeto e
cordialidade parecem ter ficado em outra era. A pandemia colocou em questão a
forma como nos relacionamos com a família, o trabalho e o tempo, mas também
aqueles gestos que se tornaram traços da nossa maneira de estar no mundo,
adquiridos ao longo de tantos anos que os fazemos sem nem perceber. Incorporar
um novo manual de conduta é como trocar o pneu enquanto o carro acelera, lembra
Larissa Polejack Brambatti, psicóloga e professora da Universidade de Brasília
(UnB).
Mais do que emergenciais,
os impactos serão duradouros e alguns podem ser permanentes, redefinindo o que
serão nossos hábitos no futuro. Restaurantes, casas de shows, lojas, companhias
aéreas, teatros, escritórios e museus já estudam como receber pessoas no futuro
de modo que elas se aproximem o mínimo possível umas das outras. Os drive-ins
ressurgem como alternativa segura, enquanto escolas já falam em higienizadores
nas portas.
— Essa nova forma de
relação é um desafio, especialmente para o brasileiro, que é muito acostumado
ao toque, ao tapinha nas costas, ao abraço e ao beijo—diz Larissa,que pertence ao
Plano de Contingência em Saúde Mental e Apoio Psicossocial ao Enfrentamento do
Coronavírus da UnB. —O desafio é encontrar maneiras de continuarmos sendo um
povo caloroso, substituindo o toque físico pelo olhar, pela fala, pela
conversa... E vamos ter que aprender isso rapidamente.
BEIJOS PROIBIDOS POR LEI
Mudar hábitos tão
enraizados da noite para o dia pode parecer impossível. Mas a resposta para o
futuro muitas vezes está... no passado. Se olharmos para trás veremos que os
brasileiros nem sempre foram assim tão táteis e efusivos. A historiadora Mary
Del Priore, que investigou a vida privada dos nossos antepassados, em livros
como “Histórias íntimas”, lembra que, no século XIX, o hábito de tocar os
outros era considerado pouco civilizado. Dom Pedro II, aliás, foi algumas vezes
repreendido pela Condessa de Barral porque insistia em sua maneira bem
brasileira de ficar tocando nas pessoas durante suas viagens à Europa.
Mary Del Priore lembra
que, se a proximidade física devia ser moderada, beijos, então, nem pensar... A
boca era vista como algo “sujo”, transmissor de doenças. Foi só a partir dos
anos 1940 e 50, com a influência do cinema, que as pessoas começaram a ver representações
mais despreocupadas da proximidade física. A partir daí, passaram a
reproduzi-las em suas vidas. — As pessoas hoje sentem falta de abraço e de
beijo, mas é bom lembrar que durante séculos nossos antepassados viveram sem
nada disso — conta ela. — O ser humano sempre vai inventar uma maneira de
demonstrar o seu afeto. Poderá ser através de palavras, através de escritos,
através de fotografia... Ninguém vai deixar de falar de seus sentimentos.
Historicamente, epidemias foram responsáveis por acelerar mudanças nas relações
sociais. Muitas delas impostas por lei. Para combater a peste, por exemplo, o
beijo foi proibido tanto pelo imperador Tiberius, na Roma Antiga, quanto na
Inglaterra do século XV e na Nápoles do século XVI. Séculos mais tarde o mesmo
aconteceu no México (em 2005) e na África do Sul (em 2009), dessa vez para
conter um surto de gripe. Os hábitos vão e voltam, de forma cíclica.
O problema é que, no
Brasil, sempre se dá aquele jeitinho de evitar novas regras. E o vírus não
aceita jeitinho, lembra o antropólogo Roberto Da Matta. Em suas idas ao
supermercado, ele cansou de ver pessoas tirando as máscaras para conversar e
insistindo em toques nas costas e apertos de mão.
— Para nós, chegar perto
é uma pressuposição cultural —explica Da Matta. — É uma proximidade que faz
parte da nossa cultura de desigualdade. Quando você não tem muito dinheiro,
você se diverte como? Ficando junto. Combina uma reunião e cada um traz alguma
coisa, um traz o torresmo, o outro a cerveja... E agora você vai dizer que as
pessoas não podem fazer nem mais isso? O Brasil não está pronto para nada
disso.
MORA NA BIOLOGIA
A dificuldade de nos
livrarmos de velhos costumes também se explica por questões biológicas. Quando
damos um longo abraço, aumenta a liberação de ocitocina no corpo. E ela é um
neuro-hormônio muito importante para a gente se sentir ligado a outras pessoas,
como conta a psiquiatra Raquel de Boni, que é pesquisadora da Fiocruz: — É um
hormônio que as mulheres liberam quando amamentam, por exemplo. Ele dá uma
sensação de pertencimento, de felicidade. Raquel coordena no Brasil um estudo
que, com enquete on-line, tem o objetivo de avaliar mudanças no estilo de vida
de brasileiros e espanhóis provocadas pela pandemia.
Por aqui, também participa do estudo o psiquiatra Flávio Kapczinski, pesquisador da UFRGS, que faz pós-doutorado na McMaster University, do Canadá. Na Espanha, a parceria é com a Universitat de Valencia, por meio do cientista Vicent Balanzá. Mais de 20 mil pessoas já responderam ao questionário nos dois países. No Brasil, é possível participar até o dia 20 em http://www.surveygizmo.com/s3/5546915/covid-19-pt-br?fbclid=IwAR0EvPRKHccxqQbO6cW5iCzqCcuZyCysA44aaakS_RiFZ-Ric4_TWpJKHxU . Dados preliminares da pesquisa mostram que 54% dos participantes brasileiros notam uma mudança no seu suporte social, ou seja, na sua rede de amparo provida por outras pessoas, contra menos de 35% na Espanha, o que aponta uma possível fragilidade maior entre nós. —Até a vacina, não há outro caminho se não uma troca nesses cumprimentos — pondera Flávio Kapczinski. —Isso fará parte do novo normal, de uma nova etiqueta. É sabido que períodos de morte e recolhimento costumam produzir explosões de vida. Basta ver o Renascimento após a peste, ou os loucos anos 20 após a gripe espanhola. Para o brasileiro, pode ser a oportunidade de trocar a efusão costumeira por uma conexão mais profunda, que vá além do tapinha nas costas. — Podemos substituir o toque físico por um movimento emocional, de empatia maior, para que a gente se conecte afetivamente e não apenas fisicamente —diz Larissa.
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