COLAPSO FLORESTA É USINA DE ÁGUA
Cientistas alertam que Amazônia já dá sinais de transformação da floresta em campos
A nuvem negra que fez do dia noite em São Paulo, em 19 de agosto, chamou a atenção do mundo para as queimadas na Amazônia, cujas cinzas cobriram o céu da metrópole. Mas, em pleno bioma, há sinais mais evidentes da gravidade da situação. A Floresta Amazônica já apresenta sintomas de que caminha para o colapso, alerta o editorial assinado pelo climatologista Carlos Nobre e pelo biólogo americano Thomas Lovejoy e publicado na “Science Advances”, respeitado periódico científico. Há marcas claras de que estamos mais próximos do chamado ponto de inflexão, a transformação da floresta tropical em savana, com consequências para o clima do continente. Um risco identificado pelo próprio Nobre em 1990, em estudos pioneiros, e previsto para acontecer por volt ade 2050, se as mudanças climáticas não fossem combatidas. Nobre destaca que a transição para a savanização — a substituição da floresta por campos — mostra estar em curso no norte do Mato Grosso e no sul do Pará, com a estação seca mais prolongada e quente. A previsão era de que a savanização poderia ocorrer em meados deste século. Ane Alencar, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), diz que diferenças de até 13°C entre a temperatura de áreas desmatadas e remanescentes de floresta são claras nas cabeceiras do Xingu, no Mato Grosso.
O desmatamento, do qual as queimadas são o sinal mais evidente, tem acelerado o processo ao substituir a cobertura de árvores por pastagens, plantações sema mesma capacidade de retenção de umidade ou áreas devastadas e abandonadas. Ane explica que, sema floresta,não há ciclagem de água, poisa u mi da deéba ixa em grandes áreas desmatadas. — Temos visto os sinais se intensificarem acada ano.
Cresceu a mortalidade de árvores nativas da úmida Amazônia. A floresta morre e o clima sofre —destaca Nobre. No editorial, Nobre e Lovejoy frisam que as secas sem precedentes de 2005, 2010 e 2015/16 mostram que o ponto de inflexão “está aqui, é agora” e que a floresta precisa ser restaurada para “recuperar seu ciclo hidrológico e continuar a servir como motor do clima continental e parte essencial do ciclo de carbono”. O texto chega no fim de um ano em que o desmatamento da Amazônia subiu 29,5%, o maior aumento em duas décadas. A floresta ajuda a regular a chuva em escala local e em todo o continente. É ela que proporciona condições favoráveis à agricultura na América do Sul, à exceção do Chile. A cada dia, a transpiração das árvores leva 22 bilhões de toneladas de água do solo da floresta para a atmosfera. Cerca de 50% das chuvas têm origem na transpiração da própria floresta.
O vapor d’água transportado pelos ventos da Amazônia — os chamados rios voadores — é crucial para o abastecimento de água do sudeste da América do Sul. Um estudo apresentado no Sínodo para a Amazônia, no Vaticano, neste ano, mostrou que cerca de 70% do PIB do continente deriva da zona de influência da chuva produzida pela floresta.
ESTIAGEM PROLONGADA
A Floresta Amazônica devolve para a atmosfera, que redistribui pelo continente, pelo menos 75% da umidade que recebe das chuvas. Porém, quando uma área é desmatada, 50% da água é perdida no solo e não volta à atmosfera, diz o editorial. Dados indicam que a estação seca em 50% da Bacia Amazônica já se prolonga por algumas semanas, principalmente em áreas desmatadas. “O quanto a floresta ainda suportará até se converter numa savana tropical?”, questionam os autores. Segundo Nobre, parte da floresta, principalmente as regiões afetadas por grandes incêndios florestais, provavelmente já mudaram para um sistema diferente, que levará décadas ou séculos para se recuperar. O editorial afirma que o desmatamento levará ao aparecimento de savanas principalmente no leste e no sul da Amazônia, com possibilidade de se estender para áreas a sudoeste e ao centro, “porque essas zonas estão naturalmente perto do mínimo necessário de chuva para a floresta se manter”. Os cientistas advertem ainda que a área desmatada já é significativa e “assustadora”: 17% da Bacia Amazônica e cerca de 20% da Amazônia brasileira. Nobre e Lovejoy afirmam, todavia, que é possível evitar o desastre por meio de projetos ambiciosos de restauração, “particularmente nas regiões desmatadas e que hoje são pastagens e área de plantações abandonadas”. Elas representam 23% da área desflorestada.
CHANCE DE RECUPERAÇÃO
“Essas áreas, largadas à própria sorte, são provavelmente a principal razão por que a Amazônia já não virou uma savana em expansão”. Os cientistas destacam que as áreas mais críticas para o reflorestamento são o sul e o leste do bioma. Lembram que um projeto nessa linha poderia ser parte das metas assumidas no Acordo de Paris. Eles salientam que práticas econômicas de visão de curto prazo, como as monoculturas de soja, cana de açúcar e criação extensiva de gado, deveriam ser substituídas pela bioeconomia, baseada na floresta em pé e na biodiversidade. “O povo e os líderes dos países amazônicos têm o poder, a ciência e os instrumentos para evitar um desastre de escala continental. Juntos, podemos mudar a direção a favor de uma Amazônia sustentável.”