‘A FORMA COMO TRATAMOS OS PACIENTES TEM QUE SER REFINADA’
Especialista em medicina de precisão diz que em menos de dez anos profissionais poderão criar tratamentos personalizados com dados biológicos
Há alguns anos, a medicina evolui para um cuidado cada vez mais individualizado do paciente. O grande carro-chefe dessa transformação é a medicina de precisão, que analisa características individuais e biomarcadores para oferecer um tratamento mais assertivo aos pacientes. Em entrevista ao GLOBO, por Zoom, o médico belga Daniel De Backer, chefe dos departamentos de cuidados intensivos dos Hospitais CHIREC (Bruxelas e Braine l’Alleud-Waterloo) e professor da Universidade Livre de Bruxelas, explica o que é a medicina personalizada e como essa forma de atendimento está se consolidando.
Em que casos um tratamento pode ser individualizado?
Um mesmo medicamento não tem o mesmo efeito para todo mundo. Antes, considerávamos que todas as pessoas eram mais ou menos iguais e que uma mesma doença, com a mesma gravidade, teria características iguais em pessoas diferentes. No entanto, descobrimos que os caminhos que levam determinado indivíduo a chegar em um alto nível de gravidade de uma doença podem ser diferentes dos que levam outra pessoa ao mesmo patamar. Então, às vezes, a forma como tratamos esse paciente precisa ser refinada. Com a medicina baseada em evidências, que é a melhor opção que temos no momento, ainda tentamos randomizar os pacientes com base em suas características gerais. Um bom exemplo disso talvez seja o de um paciente com disfunção respiratória grave devido à Covid-19. Vamos dizer que esse paciente esteja intubado na UTI. Globalmente, recorre-se a alguns medicamentos, como esteroides, que darão uma resposta na maioria dos casos. Mas muitas vezes nos defrontamos com pacientes nos quais eles não têm o mesmo resultado. Talvez eles tenham complicações que responderiam melhor a outra droga que na média dos pacientes mostrou-se menos eficaz. A medicina de precisão pode ajudar nesses casos.
Quem pode rá se beneficiar dessa abordagem?
Os Estados Unidos estão olhando para grandes bancos de dados com diferentes fenótipos, que é a forma como o genótipo se expressa, mas isso é baseado em muitos fatores. Alguns deles são difíceis de identificar apenas olhando para o paciente, mas ao olhar para um grande número deles é possível identificar mais facilmente diferentes grupos de pessoas, com variáveis específicas, que se beneficiaram de determinada intervenção. Por exemplo, se olhamos para dois pacientes internados na UTI com pneumonia, intubados e tomando medicamentos para manter a pressão arterial estável, parece ser uma situação muito parecida. Mas se considerarmos outros fatores que não são visíveis a olho nu, veremos que um desses pacientes pode ter um desfecho ruim, enquanto o outro não. Poderemos ver que a resposta de cada um deles a determinada terapia será diferente. Então eu acho que no futuro nós precisamos prestar mais atenção nisso. A questão será identificar quais são esses fatores. Seria o genótipo? Talvez. Mas se você considerar que eu sou homem e você mulher e por isso temos genes diferentes, isso ainda não explica todas as diferenças. Muitas vezes, a questão está mais na expressão desses genes, no fenótipo. Estamos tentando identificar esses fatores.
Como a medicina de precisão já está sendo aplicada?
De muitas formas, em especial no tratamento de câncer, mas também das doenças autoimunes, nas quais conseguimos identificar que algumas respostas ocorrem pela presença de alguns receptores, responsáveis por gerar uma resposta diferente para o mesmo medicamento, por exemplo. Isso já está sendo usado no campo da medicina e será ainda mais no futuro. Na medicina intensiva, especificamente, podemos identificar populações por meio de biomarcadores, como alguns fatores de inflamação. Como em pacientes que expressam mais uma determinada citocina e são mais propensos a responder a determinadas intervenções do que pacientes que expressam menos. Além disso, podemos avaliar a resposta imune e até mesmo identificar pacientes que não estão respondendo tão bem a uma infecção e para os quais talvez precisaríamos aumentar a resposta imunológica. Definitivamente não estamos mais no campo de tamanho único, quando a mesma coisa serve para todos. Temos dados preliminares mostrando que ferramentas de inteligência artificial também podem ajudar. Isso já começa a ser implementado em ferramentas de monitoramento comercializadas atualmente. Elas são capazes de prever algo que irá ocorrer dentro de 20 a 30 minutos, com uma precisão muito boa.
Seriam essas ferramentas o futuro da medicina?
Eu diria que a medicina de precisão precisa estar no futuro da medicina, mas não estará sozinha. Isso significa que ainda precisamos de caminhos que beneficiem a maioria dos pacientes, porque eu não sei se no atendimento de emergência, por exemplo, estarão disponíveis ferramentas como essas. Então, provavelmente teremos uma combinação dessas duas vertentes, no sentido de que, globalmente, com as diretrizes que temos, sabemos que devemos fazer X, Y e Z para favorecer a maioria dos pacientes. Mas teremos a medicina de precisão para refinar esses tratamentos e dizer “preste atenção nesse paciente porque ele também pode se beneficiar de outro medicamento para esse problema”. Isso provavelmente acontecerá na prática entre cinco e dez anos.
Quais são os desafios para chegarmos lá?
O primeiro é encontrar marcadores que sejam acessíveis para todos. Se tivermos apenas algo muito caro, isso nunca estará amplamente disponível em todos os países, em todos os hospitais, públicos e privados. O segundo aspecto, em especial para o campo dos cuidados intensivos, é ter uma rápida resposta. Por exemplo, se você tem um marcador que demora três semanas para aparecer, você só saberá que havia algo bom ou ruim para aquele paciente depois que o problema já aconteceu. E por último, é claro, ter à disposição medicamentos ou intervenções que realmente façam a diferença para esses pacientes específicos, que mais se beneficiam da medicina de precisão. Os antibióticos são um exemplo simples e interessante. Hoje, um caso de pneumonia é tratado com diferentes tipos de antibióticos. Se pudermos ser mais ágeis para identificar qual cepa é responsável pela infecção, se ela é resistente ao tratamento ou não, será possível ter mais rapidez e precisão.
Quais serão os benefícios da ampliação desse tipo de tecnologia na medicina?
O primeiro objetivo, é claro, é melhorar o cuidado ao paciente. O segundo é tentar minimizar os custos da saúde, porque às vezes usamos medicamentos caros que não serão úteis para aquela pessoa. Nesse caso, tudo vai depender do custo da intervenção e de termos marcadores bons e acessíveis. Por exemplo, para uma pessoa jovem, que precisa de cuidados intensivos, nosso objetivo é que a UTI seja apenas um suporte breve, e que ela possa sair de lá tão apta quanto antes para continuar com sua vida normalmente.
“Descobrimos que os caminhos que levam determinado indivíduo a chegar em um alto nível de gravidade de uma doença podem ser diferentes dos que levam outra pessoa ao mesmo patamar” “Definitivamente não estamos mais no campo da medicina de tamanho único, quando o mesmo tratamento serve para todos”