Reflexão intensa e bem-humorada sobre os labirintos da mente, este texto aborda temas como ansiedade, autocrítica e as frases que tentamos usar como escudo contra emoções complexas. Entre a raiva e a tristeza, a narrativa revela como os pensamentos podem se tornar ruídos incessantes, misturando aflições do cotidiano e dilemas profundos. Leia e reflita!
Máquina de frases ruins. A raiva é a minha proteção contra a tristeza.
A minha cabeça vem trabalhando arduamente para me derrubar. Pela manhã, antes mesmo de eu abrir os olhos, pressinto a cama lotada de questionamentos insuportáveis. E eles matracam antes mesmo do xixi e do iogurte com 21g de proteína que a endocrinologista me mandou tomar duas vezes por dia.
Penso na sarcopenia, na osteopenia, nas vitaminas que atacam o estômago e em marcar a colonoscopia. Penso que minha cachorra está velha e me pergunto como minha filha vai lidar com essa morte, sendo que a bichinha nem está doente. E então penso na minha filha lidando com tudo o que for difícil e em mim lidando com o fato de a minha filha precisar lidar com coisas difíceis.
Ainda não são oito da manhã e penso em relações que foram ruins, penso em relações que foram boas, mas me causaram mais danos do que as ruins, e então penso no beijo da semana passada. No esmagamento do meu pensamento enquanto eu tentava enfiar minha língua até chegar no occipital do sujeito. Que homem lindo. O silêncio dentro da minha cabeça. Mas sem saber sobre suas elucubrações e seus tormentos eu não me interesso. O corpo não basta.
Penso, penso, penso e nada se aproveita. Talvez seja porque mudei de antidepressivo e este não está dando conta. Acho engraçado imaginar o novo antidepressivo tentando apresentar projetos e não aprovando nada. Meu psiquiatra insiste que o meu outro psiquiatra errou no diagnóstico. Meu contador quer saber por que fiz tantos exames para investigar alguma chance de AVC e infarto. Desde que passei a morar sozinha com minha filha, tenho pavor de morrer subitamente e penso nisso todas as noites.
Pior é a desenfreada produção de frases que se alternam entre a tosquice e a lacração. Fico na dúvida se é uma herança do período em que trabalhei em agências de publicidade ou se o vício é mais recente e alimentado por reels de jovens "dando a real".
Eu estava escolhendo tomates quando cravei, com gosto, "Sou indisponível para a indisponibilidade". Por dois segundos me achei uma grande frasista. É isso! Estou sempre protegida de qualquer coisa que no futuro dê errado pois, antes mesmo de isso acontecer, eu já não quero. Vale para trabalhos, relações ou vale para os tomates orgânicos que não encontrei e fiquei com raiva.
Do que eu tenho tanta raiva?, me pergunto escolhendo azeitonas. A raiva é a minha proteção contra a tristeza. Pensar seria a minha proteção para não sentir? Eu devo ter escolhido a palavra "escudo" na hora, mas me recuso a admitir. Mais vale uma raiva na mão do que duas horas chorando (ainda que eu chore todos os dias). Eu tô sempre com raiva de tudo porque eu tô sempre muito triste. Ser branco e estar triste é muito anos 2010. Tristeza não tem fim, nem a fila do supermercado. Não consigo parar com as frases ruins.
Passa por mim uma jovem senhora que tive o desprazer de conhecer em um jantar. Ela faz que não me vê. Para tal, ela precisou não somente me ver como se deu ao trabalho de pegar esse ver e fazer algo com ele. Uma espécie de origami do ignorar. Um papel machê da empáfia. O que mais? É tipo uma "mediocrigância", disfarçar mediocridade com arrogância. Péssimo. Só não use a palavra "escudo", por favor. Nunca fui com a cara dela. Até porque não combinaria com a decoração da minha casa. Se tivesse ido com a cara dela, rapidamente teria voltado para devolver. Ela é obrigada a ir com a cara dela o tempo todo, o que deve ser difícil. Não consigo parar.