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segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

10 atividades com o conto Missa do Galo de Machado de Assis.


 MISSA DO GALO 

NUNCA PUDE entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite. A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência

da comborça; mas afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito. 

Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar. 

Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver "a missa do galo na Corte". A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa. — Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? pergun-tou-me a mãe de Conceição. — Leio, D. Inácia. 

Tinha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D'Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição. — Ainda não foi? perguntou ela. 

— Não fui, parece que ainda não é meia-noite. 

— Que paciência! 

Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro, ela foi sentar-se na cadeira que ficava

defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza: 

— Não! qual! Acordei por acordar. 

Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma cousa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer Já disse que ela era boa, muito boa. 

— Mas a hora já há de estar próxima, disse eu. 

— Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu. — Quando ouvi os passos estranhei: mas a senhora apareceu logo. 

— Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros. — Justamente: é muito bonito. 

— Gosta de romances? 

— Gosto. 

— Já leu a Moreninha? 

— Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba. 

— Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido? 

Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, 

cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos. 

"Talvez esteja aborrecida", pensei eu. 

E logo alto: 

— D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu... 

— Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio, são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?

— Já tenho feito isso. 

— Eu, não, perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha. 

— Que velha o que, D. Conceição? 

Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranqüilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou concertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas idéias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la. 

— É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem. 

— Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. S. João não digo, nem Santo Antônio... Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia, contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras cousas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por que, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me: 

— Mais baixo! mamãe pode acordar.

E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido: cochichávamos os dous, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou, trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho: 

— Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve, se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono. 

— Eu também sou assim. 

— O quê? perguntou ela inclinando o corpo, para ouvir melhor. 

Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti-lhe a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves. 

— Há ocasiões em que sou como mamãe, acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada. — Foi o que lhe aconteceu hoje. 

— Não, não, atalhou ela. 

Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela rnissa Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me: 

— Mais baixo, mais baixo. . . 

Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver rnelhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho me. Uma das que ainda tenho frescas é que em certa ocasião, ela, que era apenas simpática,

ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma cousa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede. 

— Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros. Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava "Cleópatra"; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios. 

— São bonitos, disse eu. 

— Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro. — De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro. 

— Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso, mas eu penso muita cousa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório. 

A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos. 

Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes. — Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo.

Concordei, para dizer alguma cousa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo. Chegamos a ficar por algum tempo, — não posso dizer quanto, — inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo! missa do galol" 

— Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus. — Já serão horas? perguntei. 

— Naturalmente 

— Missa do galo! — repetiram de fora, batendo. 

— Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus até amanhã. E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.

10 atividades com o conto Missa do Galo de Machado de Assis:

1-Análise de Personagens: Peça aos alunos para analisarem os personagens principais do conto, como Nogueira e D. Conceição. Eles devem descrever suas características, motivações e a evolução ao longo da história.

2-Contexto Histórico: Discuta o contexto histórico do Brasil na época em que o conto foi escrito (final do século XIX). Explore temas como a sociedade carioca, a escravidão (ainda presente na época), e como esses elementos são refletidos no conto.

3-Estudo de Temas: Identifique e debata os temas principais do conto, como a inocência da juventude, a infidelidade, as aparências sociais e a complexidade das relações humanas.

4-Estilo Literário de Machado de Assis: Analise o estilo literário de Machado de Assis, focando em elementos como ironia, realismo e a construção de diálogos. Discuta como esses elementos contribuem para a narrativa.

5-Produção de Texto: Proponha uma redação onde os alunos devem escrever um final alternativo para o conto, mantendo o estilo de Machado de Assis.

6-Debate em Grupo: Organize um debate sobre as ações e motivações de D. Conceição. Ela é uma vítima das circunstâncias ou uma personagem mais complexa e com suas próprias intenções?

7-Análise Comparativa: Compare "Missa do Galo" com outro conto de Machado de Assis, discutindo semelhanças e diferenças em temas, personagens e estilo.

8-Dramatização: Divida a turma em grupos e peça para que dramatizem cenas chave do conto, explorando a interpretação dos personagens e o subtexto das suas interações.

9-Pesquisa e Apresentação: Atribua a cada aluno um tema para pesquisa relacionado ao conto (por exemplo, o papel da mulher na sociedade do século XIX, a vida urbana no Rio de Janeiro, etc.) e peça para apresentarem suas descobertas para a turma.

10-Diário de Personagem: Peça aos alunos para escreverem entradas de diário de um dos personagens do conto, expressando seus pensamentos e sentimentos internos.

Mais atividades nesse link:

https://joportugues.blogspot.com/2013/05/trabalhando-o-conto-missa-do-galo-de.html


domingo, 10 de setembro de 2023

Sombras de Ferrocádia: o equívoco fatal. Deodato Gomes-Um conto baseado em fatos reais.


Martin Harris sempre foi um homem de hábitos. O som do despertador acionou exatamente às 5h30 da manhã, como sempre acontecia. Ele se espreguiçou, sentindo o peso dos seus trinta e cinco anos nas costas e o frescor da manhã que entrou pela janela entreaberta. O aroma do café, já pronto na cozinha, misturava-se com o cheiro de grama cortada e orvalho.

Ele desceu das escadas de sua casa, usou uma camiseta surrada e jeans desbotado, e foi direto para a garagem. Sua moto, uma clássica dos anos 90, reluzia sob a luz fraca da lâmpada. Martin Harris passou a mão sobre o banco de couro, sentindo uma textura familiar e reconfortante. Ele sempre faz uma verificação meticulosa antes de qualquer viagem, mesmo que fosse apenas até uma cidade vizinha. E hoje, ele tinha um propósito especial.

"Luzolar", ele murmurou para si mesmo, imaginando as ruas de paralelepípedos, as casas com telhados de barro e as crianças correndo com pipas coloridas. Ele nunca esteve lá, mas ouviu histórias. Histórias de uma cidade onde a simplicidade e a calma reinavam, onde as pessoas ainda se cumprimentavam nas ruas e paravam para conversar nas praças. Melhor ainda, todos os moradores de Luzolar se conheciam.

Martin Harris estava empolgado para ir a Luzolar, e recolher as doações para o orfanato. Todos os meses, ia alguém à esta cidade  para fazer o recolhimento das doações, e desta vez cabia a ele buscá-las. Martins decidiu que seria ele mesmo que se prestaria a este serviço tão relevante para o orfanato que dependia desta ação para atender mais de cem crianças. Queria sentir a energia da solidariedade daquele lugar e, de alguma forma, contribuir com sua parte na assistência às crianças abandonadas.

Próximo à casa de Harris, repousava o orfanato de São Henrique, onde as paredes carregavam histórias mais profundas do que qualquer um poderia imaginar. Não era um lugar onde crianças eram simplesmente 'deixadas', mas um refúgio para pequenos seres que, por circunstâncias frequentemente trágicas ou injustas, não tinham mais onde chamar de lar. Algumas haviam perdido seus pais em acidentes súbitos, tragédias imprevistas que rasgavam famílias ao meio. Outras eram frutos de relações fraturadas, onde o amor que deveria nutri-las evaporava-se em nuvens de conflito e negligência. E ainda havia aquelas que, mesmo cercadas por família, foram entregues à instituição na esperança de uma vida melhor, uma chance de escapar da pobreza ou da violência. Cada criança trazia consigo um mosaico de memórias, esperanças e sonhos, esperando por um novo começo, por mãos que as guiassem com amor e compreensão. Este orfanto sobrevivia da doação das pessoas e não recebia nenhum subsídio do Estado. 

Ele ligou a moto, sentindo o ronco do motor vibrar em seu peito. Com um sorriso no rosto, pensou: "Hoje é o dia. Vou unir o útil ao agradável e conhecer Luzolar". E assim, com o sol nascendo no horizonte, Harris Martin  partiu, levando consigo uma mochila vazia e um coração cheio de esperança.

Foi no alvorecer desta manhã serena que Harris seguia seu destino para Luzolar. A estrada se estendia à sua frente, um caminho pavimentado de esperança e propósito. A cada quilômetro percorrido, ele sentia a brisa fresca em seu rosto, como se a própria natureza aplaudisse sua missão.

O rugido da moto cortando o asfalto era uma melodia constante, mas, em sua mente, tudo estava em silêncio, exceto pelos pensamentos de gratidão e reflexão. Ele pensava nas crianças do orfanato, em seus olhos brilhantes e corações generosos, que, apesar das adversidades, escolhiam praticar a solidariedade. Para Harris, cada curva na estrada representava uma criança, cada paisagem uma história, e cada sombra, a promessa de um amanhã melhor.

O zumbido da moto e o rodar de seus pneus eram como os pensamentos acelerados que passavam por sua mente. Ele imaginava o rosto de cada criança do orfanato, sua determinação em fazer a diferença, sua escolha voluntária de se solidarizar, recolhendo doações para os menos afortunados de nossa sociedade.

Ao se aproximar de Luzolar, uma sensação de satisfação e determinação o preencheu. Sabia que cada quilômetro percorrido era um passo adiante na transformação da vida de inúmeras crianças. E enquanto o sol se erguia no horizonte, iluminando seu caminho, Harris sentia no coração que, juntos, eles estavam tecendo uma tapeçaria de amor e esperança para o mundo.

Na pequena cidade de Luzolar, no estado de Serrolândia, a vida era tranquila e as pessoas se conheciam muito bem. Localizada em um vale entre duas serras majestosas, Luzolar é uma cidade que vive em harmonia com a natureza. Desde a sua fundação, há mais de três séculos, a cidade tem sido um bastião de inovação e sustentabilidade. A arquitetura local, feita com pedras extraídas das montanhas próximas, confere à cidade um brilho cinzento-azulado que, sob a luz do entardecer, faz jus ao seu nome.

O grande destaque de Luzolar é o "Espelho Celestial", uma lagoa central que reflete perfeitamente o céu. Segundo as lendas locais, aqueles que contemplam suas águas ao entardecer podem vislumbrar fragmentos do futuro ou até mesmo mensagens de entes queridos que já se foram.

A cidade se tornou uma referência mundial em energias renováveis. Os campos que cercam Luzolar são cobertos por painéis solares e moinhos de vento que fornecem energia limpa de forma constante. O transporte público é inteiramente elétrico e os habitantes orgulham-se de suas ruas limpas e jardins comestíveis, que brotam em quase cada esquina.

O povo de Luzolar é diverso, com ancestrais provenientes de todos os cantos do mundo. Apesar das diferenças culturais, existe uma crença compartilhada na importância da comunidade, do respeito à natureza e do poder da inovação. As festas locais são uma mistura de tradições ancestrais e inovações contemporâneas, com músicas e danças que evoluem constantemente, mas que nunca esquecem suas raízes.

Mas, como em qualquer sociedade, Luzolar tem seus segredos e tensões. O avanço tecnológico e a riqueza gerada pela exportação de energia renovável levou a desigualdades. Enquanto o centro da cidade é próspero e repleto de inovações, os arredores, mais distantes do "Espelho Celestial", são marcados por bairros mais pobres e descontentes, onde a magia do entardecer não brilha tão intensamente.

Mas um dia, um acontecimento terrível abalou a comunidade. Martin Harris, um homem dedicado e caridoso, estava na cidade a trabalho, recolhendo doações para um orfanato da cidade de Vilêramina. Ele era conhecido por sua gentileza e sempre estava disposto a ajudar os outros. 

Martin Harris possuía uma aura suave e acolhedora, como a de um antigo carvalho sob cujas ramificações inúmeros pássaros encontram abrigo. Seu coração, vasto e generoso, pulsava não apenas por ele, mas por todos aqueles que cruzavam seu caminho. Era comum vê-lo, ao fim de uma tarde dourada, conversando com as crianças nos orfanatos locais, ouvindo suas histórias com uma atenção genuína, fazendo-as sentir-se importantes e amadas. 

Em cada esquina de Vilêramina, cidade onde morava,  Martin era conhecido não apenas pelo nome, mas pelas suas ações. Ele tinha o dom raro de ver a humanidade nos olhos daqueles que a sociedade muitas vezes esquecia ou descartava. Aos pobres, aos excluídos, aos marginalizados, Martin oferecia mais do que esmolas ou palavras de conforto; ele oferecia empatia, uma mão amiga e a certeza de que, no vasto e complicado tecido da sociedade, cada fio, por mais tênue que fosse, tinha seu valor e seu lugar.

Thomas Miller, um comerciante local, também era uma figura conhecida e respeitada na cidade.

Aquele fatídico dia, Martin estava procurando uma mulher de nome Daniela, conhecida por todos da cidade pelo apelido de "Dani", para receber uma doação para o Orfanato da sua cidade. Ele perguntou a Thomas onde "Dani" residia, sem saber que essa pergunta simples causaria uma tragédia. Dani era a senhora que sempre ajudava financeiramente o orfanato, e que coube a Martin dessa vez ir buscá-la em Luzolar.

Daniel, também com o mesmo apelido de "Dani", um homem fugitivo da cidade de Ferrocádia, onde supostamente havia já ha 10 anos atrás cometido um homicídio, estava vivendo sob a sombra de seu passado. Conhecido como "Dani", ele sempre olhava por cima do ombro das pessoas, temendo que alguém viesse acertar contas com ele.

Daniel, nascido em Luzolar, viveu em Ferrocádia,  um ambiente onde a violência e a força eram as únicas moedas de troca reconhecidas. Seus olhos cinza, quase como o chumbo derretido, escondiam tormentas de emoções e segredos. Ele possuía uma estatura mediana, cabelos negros e um olhar que poucos podiam decifrar. Tal olhar, por vezes, remetia à calmaria de um mar sem ondas, mas em outros momentos revelava tempestades escondidas.

Misterioso e recluso em si mesmo, Daniel havia se tornado um enigma para os habitantes de Luzolar. Chegou à cidade dez anos atrás, sob uma tempestade torrencial, como se os céus chorassem por sua chegada. Poucos sabiam de sua estada em Ferrocádia ou das suspeitas que o envolviam. Ele nunca falava de seu passado, e isso apenas ampliava o mistério em torno de sua figura.

Por trás daquela fachada impenetrável, porém, Daniel era atormentado pelos fantasmas de suas ações. Se realmente foi ele o autor do crime que lhe é atribuído, isso é algo que somente ele pode confirmar. No entanto, o peso da culpa – seja real ou imaginada – lhe roubava o sono e a tranquilidade.

Em Luzolar, Daniel vivia sob a sombra constante do medo. Estabeleceu-se como relojoeiro, uma profissão que lhe permitia trabalhar em silêncio e solidão. O tique-taque constante dos relógios parecia, de certa forma, marcar o ritmo de sua consciência e do tempo que ele sentia estar se esgotando.

Por vezes, ao entardecer, quando as cores do céu em Luzolar se misturavam com o reflexo dourado do "Espelho Celestial", ele se permitia sonhar com redenção, com um novo começo, livre dos demônios de seu passado. Mas o simples barulho de passos desconhecidos na rua ou o olhar curioso de um estranho eram suficientes para trazê-lo de volta à sua realidade de fugitivo.

Em meio à sua vida isolada, Daniel estava completamente só em Luzolar. Não havia ninguém que pudesse ver ou compreender as profundezas de seu passado enigmático. Em seus olhos cinzentos, não se vislumbrava qualquer rastro de paz, apenas a constante agitação de uma tempestade interior sem fim.       

Ah, o coração humano! Tão complexo e contraditório! Seria Daniel um criminoso buscando redenção ou simplesmente um homem preso às sombras de um passado que talvez nem mesmo fosse seu? Somente o tempo, o maior juiz de todos, poderia revelar a verdade sobre esse enigma chamado Daniel.

Ao cair da tarde, quando as sombras começavam a se alongar nas ruas de Luzolar, Harris adentrou o comércio de Martim, os olhos buscando um rosto familiar. "Onde Dani Mora?", indagou ele, a urgência em sua voz revelando a importância de sua missão. Martim, olhando na direção apontada por Harris, respondeu mostrando: "Naquela casa, ali no morro."

Do interior de outra residência, do outro lado da rua, Daniel, que até então desfrutava de um raro momento de tranquilidade, teve seu coração paralisado ao ouvir o nome "Dani". Seu passado em Ferrocádia, repleto de sombras e perseguições, imediatamente o consumiu. Para ele, "Dani" não era a benevolente Daniela, mas um codinome sinistro de um possível assassino enviado para encontrá-lo.

Antes que pudesse raciocinar claramente, Daniel, com o medo e a paranoia corroendo seu discernimento, correu para dentro de sua casa e agarrou a arma que mantinha escondida para sua proteção. Olhando pela fresta da porta, ele viu Harris, a silhueta imponente, de costas para ele. Sem hesitar e movido pelo pânico, Daniel disparou, selando um destino trágico baseado em um terrível mal-entendido.

Ao ouvir a pergunta de Martin, Dani, em seu estado de pânico e paranóia, confundiu Martin com o suposto pistoleiro de Ferrocádia. Ele correu para sua casa, pegou uma arma de fogo e atirou no local, disparando 4 vezes contra Martin, que estava de costas. Não se contentando, aproximou do corpo de Martin já caído em decúbito ventral, com a cabeça de lado, conferiu mais dois tiros na cabeça. O motivo fútil, uma suposta autoproteção de acerto de contas por crimes cometidos no passado, levou a esta tragédia. Martin foi morto inocentemente, sem saber porque, e Thomas foi ferido na coxa, com um projetil que ricocheteou.

Daniel fugiu em uma moto, deixando para trás Luzolar em choque e uma família devastada. A Polícia Militar foi acionada, e uma busca intensa começou. A motocicleta de Daniel foi encontrada abandonada, mas ele havia escapado.

[...]

A cidade de Luzolar aguardava o julgamento. A memória de Martin, a coragem de Thomas e a sombra do passado de Daniel convergiam para aquele momento. A justiça seria feita, e a comunidade buscaria curar as feridas de um dia que mudaram para sempre a vida de todos.

O julgamento foi um momento solene, com a presença de jurados convocados e uma tensão palpável no ar. A defesa e a acusação defenderam seus casos, e o júri deliberou.

Daniel foi considerado réu e condenado. A sentença foi um alívio para a família de Martin e uma declaração de justiça e não de vingança para a pequena cidade de Luzolar.

A vida contínua, mas a lembrança daquele dia terrível, um exemplo de como a vida pode mudar em um instante e de como a busca por justiça é uma jornada longa e árdua. A cidade nunca esquecerá Martin Harris, o homem que veio recolher donativos para o orfanto de sua cidade  e encontrou um destino trágico, nem Thomas Miller, que carregará a cicatriz daquele dia para sempre. A cidade não será capaz de esquecer esse trágico equívoco, envolvendo um inocente, que morreu sem saber que era vítima de um grande engano. A tragédia de uma confusão, um nome mal interpretado, e um medo irracional, deixou marcas profundas que nunca serão completamente apagadas.

O conto nos confronta com a profunda e perturbadora realidade dos efeitos da paranoia e do medo enraizados em um passado turbulento. Revela a fragilidade da mente humana quando assombrada por seus demônios interiores e como, em momentos de pânico, podemos agir de maneira impulsiva, resultando em consequências irreparáveis. Daniel, apesar de seus esforços para escapar de Ferrocádia, não conseguiu escapar de si mesmo e do peso do seu passado, culminando em um ato fatal que alterou para sempre o curso de várias vidas.

Desta tragédia, emerge uma lição essencial sobre a importância da clareza de pensamento e da comunicação. Em um mundo onde mal-entendidos podem facilmente surgir, é imperativo que nos esforcemos para entender verdadeiramente uns aos outros, para escutar com empatia e para agir com discernimento. Afinal, muitas vezes, as sombras que tememos são apenas projeções de nossas próprias inseguranças e traumas, e enfrentá-las com compreensão e amor pode ser o único caminho para a verdadeira redenção.

     Professor Deodato Gomes Costa

🔍🌆 Em Luzolar, uma cidade de inovação e harmonia, um trágico mal-entendido mudou para sempre o destino de seus habitantes. Se você estivesse em uma cidade onde um simples nome pudesse desencadear uma tragédia, como você garantiria a clareza e a comunicação? 

Venha mergulhar no conto de Luzolar e descobrir a importância da empatia e do entendimento em tempos de crise.

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