Bullying

domingo, 10 de setembro de 2023

Sombras de Ferrocádia: o equívoco fatal. Deodato Gomes-Um conto baseado em fatos reais.


Martin Harris sempre foi um homem de hábitos. O som do despertador acionou exatamente às 5h30 da manhã, como sempre acontecia. Ele se espreguiçou, sentindo o peso dos seus trinta e cinco anos nas costas e o frescor da manhã que entrou pela janela entreaberta. O aroma do café, já pronto na cozinha, misturava-se com o cheiro de grama cortada e orvalho.

Ele desceu das escadas de sua casa, usou uma camiseta surrada e jeans desbotado, e foi direto para a garagem. Sua moto, uma clássica dos anos 90, reluzia sob a luz fraca da lâmpada. Martin Harris passou a mão sobre o banco de couro, sentindo uma textura familiar e reconfortante. Ele sempre faz uma verificação meticulosa antes de qualquer viagem, mesmo que fosse apenas até uma cidade vizinha. E hoje, ele tinha um propósito especial.

"Luzolar", ele murmurou para si mesmo, imaginando as ruas de paralelepípedos, as casas com telhados de barro e as crianças correndo com pipas coloridas. Ele nunca esteve lá, mas ouviu histórias. Histórias de uma cidade onde a simplicidade e a calma reinavam, onde as pessoas ainda se cumprimentavam nas ruas e paravam para conversar nas praças. Melhor ainda, todos os moradores de Luzolar se conheciam.

Martin Harris estava empolgado para ir a Luzolar, e recolher as doações para o orfanato. Todos os meses, ia alguém à esta cidade  para fazer o recolhimento das doações, e desta vez cabia a ele buscá-las. Martins decidiu que seria ele mesmo que se prestaria a este serviço tão relevante para o orfanato que dependia desta ação para atender mais de cem crianças. Queria sentir a energia da solidariedade daquele lugar e, de alguma forma, contribuir com sua parte na assistência às crianças abandonadas.

Próximo à casa de Harris, repousava o orfanato de São Henrique, onde as paredes carregavam histórias mais profundas do que qualquer um poderia imaginar. Não era um lugar onde crianças eram simplesmente 'deixadas', mas um refúgio para pequenos seres que, por circunstâncias frequentemente trágicas ou injustas, não tinham mais onde chamar de lar. Algumas haviam perdido seus pais em acidentes súbitos, tragédias imprevistas que rasgavam famílias ao meio. Outras eram frutos de relações fraturadas, onde o amor que deveria nutri-las evaporava-se em nuvens de conflito e negligência. E ainda havia aquelas que, mesmo cercadas por família, foram entregues à instituição na esperança de uma vida melhor, uma chance de escapar da pobreza ou da violência. Cada criança trazia consigo um mosaico de memórias, esperanças e sonhos, esperando por um novo começo, por mãos que as guiassem com amor e compreensão. Este orfanto sobrevivia da doação das pessoas e não recebia nenhum subsídio do Estado. 

Ele ligou a moto, sentindo o ronco do motor vibrar em seu peito. Com um sorriso no rosto, pensou: "Hoje é o dia. Vou unir o útil ao agradável e conhecer Luzolar". E assim, com o sol nascendo no horizonte, Harris Martin  partiu, levando consigo uma mochila vazia e um coração cheio de esperança.

Foi no alvorecer desta manhã serena que Harris seguia seu destino para Luzolar. A estrada se estendia à sua frente, um caminho pavimentado de esperança e propósito. A cada quilômetro percorrido, ele sentia a brisa fresca em seu rosto, como se a própria natureza aplaudisse sua missão.

O rugido da moto cortando o asfalto era uma melodia constante, mas, em sua mente, tudo estava em silêncio, exceto pelos pensamentos de gratidão e reflexão. Ele pensava nas crianças do orfanato, em seus olhos brilhantes e corações generosos, que, apesar das adversidades, escolhiam praticar a solidariedade. Para Harris, cada curva na estrada representava uma criança, cada paisagem uma história, e cada sombra, a promessa de um amanhã melhor.

O zumbido da moto e o rodar de seus pneus eram como os pensamentos acelerados que passavam por sua mente. Ele imaginava o rosto de cada criança do orfanato, sua determinação em fazer a diferença, sua escolha voluntária de se solidarizar, recolhendo doações para os menos afortunados de nossa sociedade.

Ao se aproximar de Luzolar, uma sensação de satisfação e determinação o preencheu. Sabia que cada quilômetro percorrido era um passo adiante na transformação da vida de inúmeras crianças. E enquanto o sol se erguia no horizonte, iluminando seu caminho, Harris sentia no coração que, juntos, eles estavam tecendo uma tapeçaria de amor e esperança para o mundo.

Na pequena cidade de Luzolar, no estado de Serrolândia, a vida era tranquila e as pessoas se conheciam muito bem. Localizada em um vale entre duas serras majestosas, Luzolar é uma cidade que vive em harmonia com a natureza. Desde a sua fundação, há mais de três séculos, a cidade tem sido um bastião de inovação e sustentabilidade. A arquitetura local, feita com pedras extraídas das montanhas próximas, confere à cidade um brilho cinzento-azulado que, sob a luz do entardecer, faz jus ao seu nome.

O grande destaque de Luzolar é o "Espelho Celestial", uma lagoa central que reflete perfeitamente o céu. Segundo as lendas locais, aqueles que contemplam suas águas ao entardecer podem vislumbrar fragmentos do futuro ou até mesmo mensagens de entes queridos que já se foram.

A cidade se tornou uma referência mundial em energias renováveis. Os campos que cercam Luzolar são cobertos por painéis solares e moinhos de vento que fornecem energia limpa de forma constante. O transporte público é inteiramente elétrico e os habitantes orgulham-se de suas ruas limpas e jardins comestíveis, que brotam em quase cada esquina.

O povo de Luzolar é diverso, com ancestrais provenientes de todos os cantos do mundo. Apesar das diferenças culturais, existe uma crença compartilhada na importância da comunidade, do respeito à natureza e do poder da inovação. As festas locais são uma mistura de tradições ancestrais e inovações contemporâneas, com músicas e danças que evoluem constantemente, mas que nunca esquecem suas raízes.

Mas, como em qualquer sociedade, Luzolar tem seus segredos e tensões. O avanço tecnológico e a riqueza gerada pela exportação de energia renovável levou a desigualdades. Enquanto o centro da cidade é próspero e repleto de inovações, os arredores, mais distantes do "Espelho Celestial", são marcados por bairros mais pobres e descontentes, onde a magia do entardecer não brilha tão intensamente.

Mas um dia, um acontecimento terrível abalou a comunidade. Martin Harris, um homem dedicado e caridoso, estava na cidade a trabalho, recolhendo doações para um orfanato da cidade de Vilêramina. Ele era conhecido por sua gentileza e sempre estava disposto a ajudar os outros. 

Martin Harris possuía uma aura suave e acolhedora, como a de um antigo carvalho sob cujas ramificações inúmeros pássaros encontram abrigo. Seu coração, vasto e generoso, pulsava não apenas por ele, mas por todos aqueles que cruzavam seu caminho. Era comum vê-lo, ao fim de uma tarde dourada, conversando com as crianças nos orfanatos locais, ouvindo suas histórias com uma atenção genuína, fazendo-as sentir-se importantes e amadas. 

Em cada esquina de Vilêramina, cidade onde morava,  Martin era conhecido não apenas pelo nome, mas pelas suas ações. Ele tinha o dom raro de ver a humanidade nos olhos daqueles que a sociedade muitas vezes esquecia ou descartava. Aos pobres, aos excluídos, aos marginalizados, Martin oferecia mais do que esmolas ou palavras de conforto; ele oferecia empatia, uma mão amiga e a certeza de que, no vasto e complicado tecido da sociedade, cada fio, por mais tênue que fosse, tinha seu valor e seu lugar.

Thomas Miller, um comerciante local, também era uma figura conhecida e respeitada na cidade.

Aquele fatídico dia, Martin estava procurando uma mulher de nome Daniela, conhecida por todos da cidade pelo apelido de "Dani", para receber uma doação para o Orfanato da sua cidade. Ele perguntou a Thomas onde "Dani" residia, sem saber que essa pergunta simples causaria uma tragédia. Dani era a senhora que sempre ajudava financeiramente o orfanato, e que coube a Martin dessa vez ir buscá-la em Luzolar.

Daniel, também com o mesmo apelido de "Dani", um homem fugitivo da cidade de Ferrocádia, onde supostamente havia já ha 10 anos atrás cometido um homicídio, estava vivendo sob a sombra de seu passado. Conhecido como "Dani", ele sempre olhava por cima do ombro das pessoas, temendo que alguém viesse acertar contas com ele.

Daniel, nascido em Luzolar, viveu em Ferrocádia,  um ambiente onde a violência e a força eram as únicas moedas de troca reconhecidas. Seus olhos cinza, quase como o chumbo derretido, escondiam tormentas de emoções e segredos. Ele possuía uma estatura mediana, cabelos negros e um olhar que poucos podiam decifrar. Tal olhar, por vezes, remetia à calmaria de um mar sem ondas, mas em outros momentos revelava tempestades escondidas.

Misterioso e recluso em si mesmo, Daniel havia se tornado um enigma para os habitantes de Luzolar. Chegou à cidade dez anos atrás, sob uma tempestade torrencial, como se os céus chorassem por sua chegada. Poucos sabiam de sua estada em Ferrocádia ou das suspeitas que o envolviam. Ele nunca falava de seu passado, e isso apenas ampliava o mistério em torno de sua figura.

Por trás daquela fachada impenetrável, porém, Daniel era atormentado pelos fantasmas de suas ações. Se realmente foi ele o autor do crime que lhe é atribuído, isso é algo que somente ele pode confirmar. No entanto, o peso da culpa – seja real ou imaginada – lhe roubava o sono e a tranquilidade.

Em Luzolar, Daniel vivia sob a sombra constante do medo. Estabeleceu-se como relojoeiro, uma profissão que lhe permitia trabalhar em silêncio e solidão. O tique-taque constante dos relógios parecia, de certa forma, marcar o ritmo de sua consciência e do tempo que ele sentia estar se esgotando.

Por vezes, ao entardecer, quando as cores do céu em Luzolar se misturavam com o reflexo dourado do "Espelho Celestial", ele se permitia sonhar com redenção, com um novo começo, livre dos demônios de seu passado. Mas o simples barulho de passos desconhecidos na rua ou o olhar curioso de um estranho eram suficientes para trazê-lo de volta à sua realidade de fugitivo.

Em meio à sua vida isolada, Daniel estava completamente só em Luzolar. Não havia ninguém que pudesse ver ou compreender as profundezas de seu passado enigmático. Em seus olhos cinzentos, não se vislumbrava qualquer rastro de paz, apenas a constante agitação de uma tempestade interior sem fim.       

Ah, o coração humano! Tão complexo e contraditório! Seria Daniel um criminoso buscando redenção ou simplesmente um homem preso às sombras de um passado que talvez nem mesmo fosse seu? Somente o tempo, o maior juiz de todos, poderia revelar a verdade sobre esse enigma chamado Daniel.

Ao cair da tarde, quando as sombras começavam a se alongar nas ruas de Luzolar, Harris adentrou o comércio de Martim, os olhos buscando um rosto familiar. "Onde Dani Mora?", indagou ele, a urgência em sua voz revelando a importância de sua missão. Martim, olhando na direção apontada por Harris, respondeu mostrando: "Naquela casa, ali no morro."

Do interior de outra residência, do outro lado da rua, Daniel, que até então desfrutava de um raro momento de tranquilidade, teve seu coração paralisado ao ouvir o nome "Dani". Seu passado em Ferrocádia, repleto de sombras e perseguições, imediatamente o consumiu. Para ele, "Dani" não era a benevolente Daniela, mas um codinome sinistro de um possível assassino enviado para encontrá-lo.

Antes que pudesse raciocinar claramente, Daniel, com o medo e a paranoia corroendo seu discernimento, correu para dentro de sua casa e agarrou a arma que mantinha escondida para sua proteção. Olhando pela fresta da porta, ele viu Harris, a silhueta imponente, de costas para ele. Sem hesitar e movido pelo pânico, Daniel disparou, selando um destino trágico baseado em um terrível mal-entendido.

Ao ouvir a pergunta de Martin, Dani, em seu estado de pânico e paranóia, confundiu Martin com o suposto pistoleiro de Ferrocádia. Ele correu para sua casa, pegou uma arma de fogo e atirou no local, disparando 4 vezes contra Martin, que estava de costas. Não se contentando, aproximou do corpo de Martin já caído em decúbito ventral, com a cabeça de lado, conferiu mais dois tiros na cabeça. O motivo fútil, uma suposta autoproteção de acerto de contas por crimes cometidos no passado, levou a esta tragédia. Martin foi morto inocentemente, sem saber porque, e Thomas foi ferido na coxa, com um projetil que ricocheteou.

Daniel fugiu em uma moto, deixando para trás Luzolar em choque e uma família devastada. A Polícia Militar foi acionada, e uma busca intensa começou. A motocicleta de Daniel foi encontrada abandonada, mas ele havia escapado.

[...]

A cidade de Luzolar aguardava o julgamento. A memória de Martin, a coragem de Thomas e a sombra do passado de Daniel convergiam para aquele momento. A justiça seria feita, e a comunidade buscaria curar as feridas de um dia que mudaram para sempre a vida de todos.

O julgamento foi um momento solene, com a presença de jurados convocados e uma tensão palpável no ar. A defesa e a acusação defenderam seus casos, e o júri deliberou.

Daniel foi considerado réu e condenado. A sentença foi um alívio para a família de Martin e uma declaração de justiça e não de vingança para a pequena cidade de Luzolar.

A vida contínua, mas a lembrança daquele dia terrível, um exemplo de como a vida pode mudar em um instante e de como a busca por justiça é uma jornada longa e árdua. A cidade nunca esquecerá Martin Harris, o homem que veio recolher donativos para o orfanto de sua cidade  e encontrou um destino trágico, nem Thomas Miller, que carregará a cicatriz daquele dia para sempre. A cidade não será capaz de esquecer esse trágico equívoco, envolvendo um inocente, que morreu sem saber que era vítima de um grande engano. A tragédia de uma confusão, um nome mal interpretado, e um medo irracional, deixou marcas profundas que nunca serão completamente apagadas.

O conto nos confronta com a profunda e perturbadora realidade dos efeitos da paranoia e do medo enraizados em um passado turbulento. Revela a fragilidade da mente humana quando assombrada por seus demônios interiores e como, em momentos de pânico, podemos agir de maneira impulsiva, resultando em consequências irreparáveis. Daniel, apesar de seus esforços para escapar de Ferrocádia, não conseguiu escapar de si mesmo e do peso do seu passado, culminando em um ato fatal que alterou para sempre o curso de várias vidas.

Desta tragédia, emerge uma lição essencial sobre a importância da clareza de pensamento e da comunicação. Em um mundo onde mal-entendidos podem facilmente surgir, é imperativo que nos esforcemos para entender verdadeiramente uns aos outros, para escutar com empatia e para agir com discernimento. Afinal, muitas vezes, as sombras que tememos são apenas projeções de nossas próprias inseguranças e traumas, e enfrentá-las com compreensão e amor pode ser o único caminho para a verdadeira redenção.

     Professor Deodato Gomes Costa

🔍🌆 Em Luzolar, uma cidade de inovação e harmonia, um trágico mal-entendido mudou para sempre o destino de seus habitantes. Se você estivesse em uma cidade onde um simples nome pudesse desencadear uma tragédia, como você garantiria a clareza e a comunicação? 

Venha mergulhar no conto de Luzolar e descobrir a importância da empatia e do entendimento em tempos de crise.

 #LuzolarMistério 

#ContoPolicial 📖🌌

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