Bullying

Mostrando postagens com marcador OPINIÃO. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador OPINIÃO. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Quando nós mesmos produzimos as tragédias No Brasil, urbaniza-se quase sempre só para os ricos; aos pobres, o improviso

João Whitaker

Arquiteto-urbanista e economista, é diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP)

Guilherme Wisnik

Arquiteto-urbanista, é vice-diretor da FAU-USP

A tragédia no litoral paulista teve como causa imediata a excepcional chuva, a maior da história. Há ações possíveis, como a iniciativa proposta pela USP de juntar esforços técnicos para uma melhor previsibilidade desses eventos climáticos, que a cada ano se repetem com mais força, e assim permitir a essencial ação de prevenção, retirando as pessoas em risco antes de os desastres ocorrerem.

Mas não podemos tapar o sol com a peneira e achar que apenas as chuvas excepcionais são causa de tamanho drama. O que ocorreu, ocorre e ainda ocorrerá se deve à ação antrópica, à maneira como no Brasil se promove uma urbanização socialmente desigual e ambientalmente agressiva.

A ocupação do litoral norte de São Paulo é um exemplo desse processo. Escolhido como lugar paradisíaco de descanso dos paulistanos de mais alta renda, foi tendo, ao longo de décadas, suas terras parceladas por empreendedores, que em geral as compravam de caiçaras ou simplesmente ocupavam áreas públicas da serra do Mar para a construção de casas de veraneio nos melhores lugares da orla.

Apesar do conforto, a falta de regulação que caracteriza nossa urbanização fez com que essa ocupação intensa não fosse acompanhada de políticas públicas de infraestrutura que permitissem atender a seu aumento acelerado e inexorável. O saneamento foi resolvido por fossas sépticas que rapidamente esgotaram a capacidade do solo; os morros foram recortados para a construção de estradas que permitissem um acesso rápido à região; o solo foi se impermeabilizando e, não raramente, mansões foram construídas em áreas inadequadas da encosta.

Toda essa ocupação geraria uma intensa atividade econômica, com crescente oferta de emprego na construção civil, na manutenção das casas, das marinas, nos serviços de segurança —e assim por diante.

Porém, como é de praxe no nosso país, nenhuma política pública se preocupou com o fato de que isso atrairia muita gente —que, como é determinado em nossa Constituição, deveria ter o direito assegurado a moradias dignas. No Brasil, urbaniza-se quase sempre só para os ricos, e os mais pobres ficam desassistidos.

Assim, repetindo a lógica de todas as cidades, restou a essa população trabalhadora (sem a qual o paraíso de veraneio dos mais ricos não existiria) instalar-se nas encostas, nas chamadas ocupações informais.

Os cortes das estradas fragilizam os morros, a impermeabilização do solo aumenta a inundação, as construções em encostas —tanto as mais luxuosas quanto as mais populares— elevam o risco de deslizamentos e a superocupação satura o solo. São décadas de uma urbanização desenfreada, sem limites, sem critérios, promotora de segregação social e destruição ambiental. Quando a chuva vem forte, ela não perdoa. Mas as vítimas, em sua enorme maioria, são sempre as famílias moradoras das comunidades mais pobres.

Podemos, sim, culpar as chuvas. Mas, se olharmos só para elas, só nos restará aguardar a próxima tragédia. Felizmente, a consciência sobre isso vem mudando no Brasil, e a ida imediata do presidente da República à região é um exemplo. É por isso que a formação de jovens arquitetos-urbanistas, conscientes de seu papel social, torna-se a cada dia mais importante.

É evidente que o modelo de urbanização dominante no mundo está, hoje, em franca revisão. Não poderemos continuar submetendo a natureza aos desígnios do progresso técnico como se ela fosse passiva e amorfa. A renaturalização das cidades com justiça ambiental é um desafio urgente, ainda mais em regiões tropicais. Cabe à universidade, ao poder público e às diversas organizações da sociedade enfrentá-la.

domingo, 19 de fevereiro de 2023

O Brasil é mais conservador do que muitos gostariam Tentar ‘consertar’ a sociedade sem levar em conta seus sentimentos pode ter consequências dramáticas


Muitíssimo interessante o Editorial do Jornal O Globo de hoje dia 19-02-2023. Leia até o final para ver a conclusão tão interessante que fecha este texto de opinião.

Que o Brasil é plural se tornou consenso. Poucos parecem, porém, atentar para as consequências práticas — e políticas — dele. Uma pesquisa da Quaest, que ouviu 2.016 brasileiros e cujos resultados foram antecipados pelo GLOBO, dá uma ideia do fosso que separa a população em temas que aqueles com maior renda ou melhor formação tendem a considerar “resolvidos” ou “pontos pacíficos numa democracia moderna”.

Para espanto deles, nada menos que 56% dos pais brasileiros consideram normal que crianças que passam dos limites apanhem (42% discordam). Na opinião de 41%, a escola não é local apropriado para debater sexualidade com adolescentes (56% acham que é). Gays e lésbicas se beijando em público incomodam 46% (48% não veem problema). Para 73%, o aborto não deveria ser legal. E 67% são contra a legalização de cassinos e jogos de apostas.

É um equívoco imaginar que a visão conservadora está restrita à direita. Ainda que os percentuais sejam mais elevados entre eleitores de Jair Bolsonaro, eles não estão tão distantes dos manifestados pelos de Luiz Inácio Lula da Silva. No caso do castigo físico às crianças, apenas nove pontos percentuais. Na repulsa ao beijo gay, no repúdio à legalização do aborto e no debate escolar sobre sexualidade, a diferença gira em torno de 20 pontos.

Prova de que o conservadorismo não tem coerência ideológica é a resposta similar, por vezes idêntica, noutros temas polarizadores. É o caso da reprovação aos cassinos, que aglutina 67% dos lulistas e 68% dos bolsonaristas. E não só. Para 92% dos brasileiros — percentual idêntico entre eleitores de Lula e Bolsonaro —, é preciso haver mais fiscalização para impedir o desmatamento da Amazônia. Também para 92% — 90% dos lulistas e 95% dos bolsonaristas —, pagamos impostos demais. Na opinião de 64% — 68% dos bolsonaristas e 60% dos lulistas —, políticos não deveriam ocupar cargos nas estatais. E, segundo responderam 58% — em percentuais idênticos nos dois grupos —, as mulheres não têm mais dificuldade para alcançar o sucesso profissional.

Concordâncias e divergências são esperadas em grandes populações. Não se podem definir mais de 208 milhões por alguns clichês, nem se deve enxergá-los apenas através das lentes de minorias que se consideram referência, quase sempre ignorando o que se passa ao redor. Os riscos dessa atitude — altaneira para uns, arrogante para outros — ficaram claros nos últimos anos.

Erupções sociais ou movimentos de revolta surgem sem aviso prévio. Foi assim em 2013, quando a fagulha do aumento na tarifa de ônibus em São Paulo levou milhões de jovens às ruas, numa reação que não estava no radar de partidos, sindicatos, academia ou imprensa. A pauta difusa de reivindicações parecia menos importante que o impulso de ir às ruas para protestar. Partiu daquele movimento descoordenado a sucessão de mobilizações contra a corrupção, em favor do impeachment de Dilma Rousseff e a favor da eleição de Bolsonaro, quando ainda era um deputado do baixo clero.

Para todos os que lidam com o público — não apenas políticos —, ignorar ou desafiar o sentimento predominante na população em nome de crenças ideológicas ou de alguma pretensa missão civilizatória é um erro que pode trazer consequências dramáticas. O certo é aprender a conviver com as diferenças e a respeitar opiniões contrárias, como em toda sociedade civilizada.