Metade da mão de obra jovem é despreparada, diz pesquisador. Para especialistas, ‘não há bala de prata’. No curto prazo, empresas têm de investir em treinamento para suprir carências
Por Glauce Cavalcanti e Letycia Cardoso — Rio
Apesar do desemprego ainda alto no país, as empresas estão enfrentando dificuldades para preencher até mesmo vagas que demandam menor qualificação, que são geralmente as portas de entrada dos jovens no mercado de trabalho. É uma contradição que se aprofundou após a pandemia com a combinação de perda no aprendizado escolar, principalmente no ensino médio, e a menor chance de ganhar competências com experiências profissionais.
Sem formação e experiência adequadas, os candidatos chegam às seleções com agravantes, apontam os recrutadores. A falta de interação social limitou o desenvolvimento de habilidades de relacionamento, o que dificulta a atuação em serviços de atendimento ao público, por exemplo. E muita gente tem limitações de lidar com dispositivos tecnológicos, cada vez mais presentes em negócios de todos os tipos.
Dessa forma, apesar dos muitos currículos e filas nas portas das seleções, comércio e serviços em geral, como restaurantes, hotéis e supermercados, têm mais dificuldades para contratar e experimentam alta rotatividade. Já empresas de eventos não conseguem encontrar jovens profissionais para receber convidados. No terceiro trimestre, a taxa de desemprego ficou em 8,7% no país. Na faixa etária de 18 a 24 anos, alcançou 18%. Entre os que têm ensino médio incompleto, foi de 15,3%.
100 dias para selecionar
Para o economista Ricardo Henriques, superintendente-executivo do Instituto Unibanco e professor associado da Fundação Dom Cabral, é esperado que essa geração entrando no mercado de trabalho agora, e desde 2021, tenha dois agravantes na assimetria entre a formação e o que esperam as empresas:
— O primeiro é (um prejuízo) cognitivo, e passa pelas disciplinas, pelo ensino. A aprendizagem ficou ainda aquém daquilo que a gente tinha. O segundo, que se sobrepõe e agrava o primeiro, é a redução da interação desses jovens com seus pares e professores. Isso fragilizou ainda mais a capacidade de serem formados para entrarem no mercado de trabalho, inclusive em competências comportamentais.
A Gupy, plataforma de recrutamento via inteligência artificial, recebe dez milhões de aplicações para vagas de trabalho por mês. No mesmo período, gera 70 mil contratações. Dez mil vagas, porém, permanecem abertas, por falta de pessoas qualificadas, mesmo com o grande contingente em busca de uma chance. Há postos que levam mais de cem dias para serem preenchidos, como os de operadores de produção e de máquinas ou consultores de qualidade.
Guilherme Dias, cofundador da Gupy, lembra que pesa nessa situação uma transformação no perfil de pessoas buscado pelo mercado de trabalho em todas as faixas de qualificação:
— Não faltam pessoas, faltam as habilidades técnicas e emocionais. O vendedor que o mercado quer não é o mesmo de antes. Ele tem de saber analisar dados, ser versátil, interagir, dialogar. As companhias exigem requisitos que temos menos em nosso mercado. É uma questão global, mas aqui é pior.
A Gupy, plataforma de recrutamento via inteligência artificial, recebe dez milhões de aplicações para vagas de trabalho por mês. No mesmo período, gera 70 mil contratações. Dez mil vagas, porém, permanecem abertas, por falta de pessoas qualificadas, mesmo com o grande contingente em busca de uma chance. Há postos que levam mais de cem dias para serem preenchidos, como os de operadores de produção e de máquinas ou consultores de qualidade.
Guilherme Dias, cofundador da Gupy, lembra que pesa nessa situação uma transformação no perfil de pessoas buscado pelo mercado de trabalho em todas as faixas de qualificação:
— Não faltam pessoas, faltam as habilidades técnicas e emocionais. O vendedor que o mercado quer não é o mesmo de antes. Ele tem de saber analisar dados, ser versátil, interagir, dialogar. As companhias exigem requisitos que temos menos em nosso mercado. É uma questão global, mas aqui é pior.
Solução é treinar
O número de frequentadores do empreendimento triplicou este ano em comparação com 2021, mas a ampliação do quadro é mais lenta. Subiu de 150 para 213 empregados, e Delgado segue contratando.
— É difícil conseguir pessoas para alguns cargos, principalmente cozinheiro e garçom. Então, abrimos mão da experiência para contratar porque precisamos dessas pessoas para ajudar nos atendimentos. Depois, treinamos continuamente. Quem tem mais experiência atua como tutor dos novos — conta.
Metade da mão de obra jovem é despreparada, diz pesquisador
Para suprir a carência de mão de obra nas posições de menor qualificação em pouco tempo, as empresas não têm outra saída a não ser investir em capacitação e adotar maior flexibilidade na seleção, apontam especialistas. O Brasil tem cerca de 20 milhões de jovens com 18 a 24 anos de idade. Desse grupo, seis milhões não concluíram o ensino médio.
Outros quatro milhões completaram esse ciclo, mas não conseguem trabalho, explica Naércio Menezes Filho, diretor do Centro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância do Insper e professor da USP.
Na avaliação do pesquisador, metade da mão de obra nessa faixa etária hoje não está preparada adequadamente para o mercado de trabalho, o que é um limitador para a autonomia pessoal dos jovens, mas também para a produtividade do país.
— Numa comparação com um jogo de futebol, é como se o Brasil entrasse em campo para enfrentar a França, por exemplo, só com seis jogadores. Os outros foram perdidos no caminho porque aproximadamente metade não tem preparo para entrar no mercado de trabalho. São jovens que não vão empreender, não vão inovar, não vão ajudar a desenvolver a economia — destaca.
Guilherme Dias, da plataforma de recrutamento Gupy, diz que não há “bala de prata” para resolver essa situação:
— As empresas terão de ser protagonistas, porque não dá tempo de esperar as pessoas chegarem prontas ao mercado. É preciso criar conjuntos de treinamento. Às vezes, vale a pena rebaixar a vaga para não ficar sem o profissional, contratando alguém com potencial para chegar ao que se quer com mais agilidade.
Danielle Lemos, coordenadora de Treinamento e Desenvolvimento da rede de supermercados Mundial, diz que, nesse cenário, a empresa tem a vantagem de não impor restrições curriculares para contratar para posições operacionais. A empresa foca em habilidades sociais e investe em treinamento para as funções.
— No varejo de alimentos, ampliamos contratações na pandemia. Como focamos em competência comportamental e possibilidade de ir além, não temos problema. Se só buscássemos ensino médio completo, não teria gente — ela reconhece. — Aqui, entra na base da pirâmide e vamos qualificando sempre, o que pode demandar outros requisitos adiante. Agora há ainda mais esforço em treinamento.
Ônus demográfico
Para o pesquisador Marcelo Neri, diretor da FGV Social, investir em treinamento e qualificação é uma forma de as empresas compensarem as perdas recentes, sabendo que esse prejuízo ocorre na entrada do país no chamado ônus demográfico.
É uma situação oposta à da vantagem produtiva que o país tinha há até pouco tempo, em que um grande contingente de jovens caracterizava um bônus demográfico. Com o envelhecimento acelerado da população, a tendência é que as empresas tenham cada vez mais dificuldade de contratar jovens para posições de entrada.
— Estão faltando jovens. Estamos entrando numa fase de ônus demográfico, fenômeno global, porém mais acelerado no país. No pós-pandemia, as empresas estão vendo, na prática, a redução acelerada do número de jovens. Faltam jovens em quantidade e, principalmente, na qualidade desejada pelas empresas. A pandemia vai deixar cicatrizes no mercado de trabalho. Os menos qualificados estão tendo maior dificuldade para trabalhar — destaca Neri.
As empresas sempre funcionaram como um espaço de compensação das deficiências escolares, com o treinamento de jovens por meio de estágios, programas de aprendizes e empregos de entrada. No entanto, apontam os especialistas, a pandemia também reduziu esse tipo de oportunidade de iniciação. No auge das restrições, em 2020, o desemprego entre trabalhadores com ensino médio incompleto chegou a 24,1%.
Neri sublinha que a lacuna de experiência e aprendizado prático se aprofundou na pandemia, impedindo que o jovem vivenciasse o “aprender fazendo”. Não por acaso, como o IBGE divulgou na última sexta-feira, a parcela de jovens entre 18 e 24 anos que não estudam nem trabalham — os chamados nem-nem — é de 31,1% no Brasil.
André Barros, sócio da empresa de eventos Party Industry, elegeu a “sagacidade” pessoal como principal qualidade para selecionar colaboradores. Entre a Copa do Mundo e o réveillon, a empresa dele está organizando 60 eventos. Cada um deles mobiliza, em média, 600 profissionais, entre empregos diretos e indiretos.
— Está muito difícil achar cenógrafos e produtores bons para trabalhar. A gente não acha mão de obra. Na pandemia, perdemos muitas pessoas para outros setores. A gente não tem feito distinção quanto a ter faculdade. O que vale é o grau de experiência da pessoa, ter habilidade de resolver adversidades que surgem no meio de um evento. Mesmo assim, faltam profissionais, e olha que a remuneração chega a R$ 5 mil por evento — diz o empresário.
A crise no mercado de trabalho, por outro lado, abre oportunidade para os mais qualificados, como Glauber Hilário, de 29 anos, há um mês trabalhando como instrutor de esportes no Hotel Nacional. A experiência dele e o currículo com curso superior fizeram diferença.
— Há seis anos não trabalho com carteira assinada. Tenho uma empresa de eventos, mas o setor retraiu na pandemia, mas sei lidar com pessoas e sou formado em educação física e dança, então juntei o útil ao agradável para crescer — diz.
Política educacional
Enquanto as empresas tentam compensar deficiências da mão de obra com treinamento, Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco e professor da Fundação Dom Cabral, avalia que é preciso que a política educacional do novo governo tenha, de imediato, estratégias para acelerar a compensação das perdas da pandemia, da recomposição de aprendizagem ao uso de bolsas para fixar os jovens na escola.
— As empresas, ao lidarem com esses jovens mais punidos pelo descaso da política do Ministério da Educação (na pandemia), terão de ter processos de acolhimento mais atentos, mais cursos, investir em treinamento e desenvolvimento de carreira — pontua o especialista.
Fonte: Jornal o Globo