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segunda-feira, 20 de abril de 2020

Raciocínio motivado O Globo 20 de Abril de 2020 - ANTÔNIO GOIS - antonio.gois@jeduca.org.br


Você é a favor ou contra o uso da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19? A não ser que seja médico, cientista ou outro profissional especializado nesse tópico, a pergunta não faz —ou não deveria fazer —o menor sentido. No entanto, desde que essa e outras questões relacionadas ao coronavírus saíram dos fóruns técnicos e foram tragadas pelo ambiente de polarização política, vimos multiplicar o número de pessoas, inclusive de mais alta escolaridade, dando opiniões convictas e apaixonadas sobre esses temas.
Por que agimos assim? Há várias explicações, e uma delas é o raciocínio motivado, um modo de pensar em que buscamos — quase sempre sem nos darmos conta — apenas argumentos que vão embasar opiniões que já formamos, em geral por instinto ou de maneira emocional.
A propensão ao raciocínio motivado pode acontecer mesmo quando tentamos embasar nossas opiniões em evidências científicas. Quando o debate da cloroquina ganhou ares de Fla-Flu político devido ao lobby de Bolsonaro e Trump pelo uso do medicamento, houve quem, sem nenhum conhecimento técnico do assunto, rapidamente pinçasse um estudo preliminar de um médico francês, feito com 20 pacientes, para se posicionar a favor.
Outros estudos, também preliminares, apontavam em direções opostas ou eram menos enfáticos. Um deles —feito por cientistas da Fundação de Medicina Tropical, de Manaus, da Fiocruz e da USP —identificou possíveis benefícios discretos e o risco de efeitos colaterais graves. No ambiente politizado, os autores logo passaram a receber ameaças de morte e acusações de serem “assassinos comunistas”.
A tática de “pescar” na ciência apenas os achados que confirmam crenças prévias é comum mesmo em temas em que há um conjunto de evidências mais sólidas. Um estudo publicado em 2013 pelo cientista John Cook (Universidade de Queensland, Austrália) mostrou que, de 11.944 artigos científicos publicados em revistas especializadas, 97% deles concordavam com o impacto da ação humana no aquecimento global. Outros estudos que fizeram esse exercício de revisão na literatura acadêmica encontraram taxas também superiores a 90%. Mesmo assim, há quem prefira dar destaque aos 3% de artigos que vão em direção contrária e apontar como evidência principal.
Em geral, o conhecimento científico avança não por causa de uma descoberta pontual retirada de um outro estudo acadêmico, mas, sim, do acúmulo de evidências construídas a partir de um conjunto de experimentos que sinalizam para uma mesma direção.
A habilidade para melhor entender e interpretar esse tipo de evidências, através de um raciocínio analítico, é também uma das missões da escola. Consta, inclusive, de nossa Base Nacional Comum Curricular. Uma das dez competências gerais do documento trata especificamente do pensamento crítico e científico, com a proposta de desenvolver nos estudantes a habilidade de investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas, em busca de soluções.
A ciência não fornece respostas claras para tudo. Mas, quando adotamos uma postura menos apaixonada e mais propensa a aceitar as melhores evidências disponíveis, em vez de confiarmos demasiadamente em nossos instintos ou achismos, a chance de tomarmos melhores decisões, como indivíduos e como sociedade, aumenta exponencialmente. Essa habilidade, infelizmente, tem feito muita falta nos tempos atuais.