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quarta-feira, 15 de abril de 2020

Por que é preciso tornar a ler Sartre, quarenta anos depois de sua morte

Se quiséssemos buscar uma definição para a vida e a obra de Jean-Paul Sartre —pensador para o qual a existência é, a negação de todas as definições possíveis —, dificilmente encontraríamos uma mais adequada do que aquela pronunciada por Raymond Bellour ainda em 1966: “Sartre é o último dos grandes escritores políticos franceses. Compreendo aqui não o homem da teoria, nem mesmo o historiador, mas o homem  da análise revoltada”.
Assim, Sartre, o homem que morreu há exatos quarenta anos, um dos mais influentes pensadores de sua época, soube expressar a revolta do inconformismo servindo-se de sua pena e de seu pensamento em registros diversos. Filósofo, concebeu uma das grandes obras do existencialismo, “O ser e o nada” (1943), percorrendo algo como 600 páginas de recusa a toda forma de determinismo e de sentido pré-fixados em nossa condição existenciária. Ficcionista, redigiu “A náusea” (1938), seu mais célebre romance, no qual a personagem principal faz a experiência da radical gratuidade da existência e a descoberta do assédio da objetividade indiferenciada das coisas sobre a consciência. Dramaturgo, compôs peças teatrais nas quais suas personagens se entregam de má-fé a uma vontade alheia, fixando-se em determinações que lhe são dadas em exterioridade em lugar de assumirem a responsabilidade por suas próprias existências. Jornalista, foi um dos fundadores da revista “Os tempos modernos” (1945), publicação destinada à realização de uma experiência concreta da liberdade por meio do radical compromisso do escritor com sua própria época. Ativista, intelectual militante, engajou-se politicamente na causa da revolução, mas preservou independência ao definir-se como um “companheiro de rota” dos comunistas, produzindo uma crítica severa ao “método de Terror” da burocracia stalinista e seu empreendimento de eliminação violenta de toda dissidência. Mas, se Sartre era um inconformado, também era um homem de afirmações: se não há determinismos em uma vida, é porque a existência não nos é dada em sua totalidade, mas sim constituída como tarefa de uma“moral do engajamento” (somos desde sempre que deve traduzir-se em luta política pelo reconhecimento da dignidade humana e a efetivação prática da liberdade. E mesmo o sentimento da angústia, que acompanha a radical revelação existencial de nossa gratuidade, deve ser vivido como um imperativo para possuir convicções, esperanças, indignações, revoltas.
Portanto, ao percorrermos as encarnações teóricas e práticas do indivíduo Sartre, seus vários registros e expressões multifacetadas, estamos diante de um conjunto de inconformismos — metafísicos, morais, políticos — que representam, para o filósofo e intelectual Sartre, a afirmação de um horizonte sempre com outrem e com as condições de realização prática da liberdade, em meio a inumanidade politicamente produzida por um mundo que passara pelo trauma da Segunda Grande Guerra, e de seu potencial de produção da morte em escala técnico-industrial.
Neste sentido, se Sartre pode ser considerado o último dos “grandes escritores políticos franceses”, o homem do “panfleto” e da “análise revoltada” — como pretendera Bellour —, isso se deve ao fato de que sua trajetória e seu pensamento marcam uma linha de continuidade com certa tradição intelectual tipicamente francesa (que remonta à entrada do “homem de letras” na arena do debate público como sujeito coletivo, marcada pelo Caso Dreyfus e a manifestação seminal de Émile Zola com seu “J’accuse”). Porém, ao mesmo tempo, apontam para o limiar de ruptura de uma experiência política, o ponto de seu esgotamento histórico. Assim, basta dizer que Sartre pertenceu a um mundo (não muito distante) para o qual a categoria histórica de “revolução” ainda guardava vigência prática (mesmo que estivesse em vias de falência). Nós, de nossa parte, pertencemos a uma época de esgotamento das grandes narrativas utópicas, de suspeição com relação às promessas de libertação emancipatória da política.
Pensador que preservou sua independência. Quatro dias após a morte do filósofo, o funeral de Sartre, sepultado no cemitério de Montparnass, atraiu uma multidão. Foi a última vez que isto aconteceu em torno de umintelectual.
Daí que Sartre tenha sido um inconformado, julgando que a existência mesma é a inconformidade incessante às formas da tirania da técnica e da objetividade cínica das manifestações recorrentes e sorrateiras das práticas da chamada. E pergunto-me qual teria sido a reação de Sartre diante de nossa situação atual, paralisados, atônitos diante de uma pandemia que parece dissolver nossa experiência cotidiana ordinária e, portanto, não pode ser compreendida como fenômeno meramente natural, mas sim como um acontecimento que explicita os limites de nossa atual prática política, reduzida à mera institucionalidade vazia das garantias formais e à ideologia de segurança que a acompanha.
Por isso mesmo, é preciso tornar a ler Sartre, para dar lugar à palavra revoltada e abrir novamente a possibilidade de uma experiência renovada de insurgência.

Sartre pertenceu a um mundo para o qual a categoria histórica de “revolução” ainda guardava vigência prática

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