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domingo, 15 de janeiro de 2023

A ERA DAS NARRATIVAS - Crônica do Jornal da Globo de 15 de Janeiro de 2023


Muitas coisas me reviraram o estômago naquele festival de horrores do 8 de janeiro, mas nem todas me surpreenderam. Como, por exemplo, o evento em si, abertamente ensaiado, avisado e anunciado, com direito a ônibus e lanches pagos, e escolta da polícia. Tive a sensação do pastor que assume um rebanho de ovelhas e se esquece de tirar do lobo a responsabilidade de vigiá-las (ele vai fatalmente comê-las, como comeu). Outra coisa que não me espantou: como o patrimônio institucional e artístico do Brasil é pessimamente guardado, vide o incêndio do Museu Nacional.

Na Praça dos Três Poderes, as imagens da horda de vândalos esfaqueando e pilhando obras de arte fizeram jus ao povo bárbaro que lhes emprestou a alcunha, aquele que saqueou Roma durante duas semanas no ano de 455. Uma cena que sangrará nos nossos livros de História para sempre, mas que é consequência dos longos últimos anos de repetidos discursos de desprezo e chacota por tudo que é artisticamente produzido nesta terra. De tanto que desvarios foram repetidos, há gente que realmente acredita neles. Eis o resultado de um elaborado e minucioso projeto de desinvestimento em educação de base, perpetuação de poder e subjugação cultural — que, aliás, não começou há quatro anos, mas se mantém por séculos e séculos, em to-dos os governos.

Daí, sim, vem a constatação assustadora: o fim da Era da Imagem. Ela começou com a popularização da televisão e chegou ao auge com o advento do TikTok, em que tudo passou a ser globalmente creditado e moldado por aquilo que as pessoas tinham a capacidade de ver: eventos históricos, padrões estéticos, construções de reputações, guerras, grandes comemorações e desastres. Se havia uma câmera registrando, era então verdade. Os relatos orais ou escritos deixaram de ser suficientes, e assumiram um papel secundário de legenda para aquilo que não podia enganar os olhos.

Mas, diante da imensa e chocante quantidade de pessoas que, mesmo com a transmissão ao vivo da barbárie em Brasília, se recusa a admitir o violento ataque ao Estado de Direito, é impossível não constatar que a Era da Imagem deu lugar à Era das Narrativas. Existe aqui um lado bom e outro ruim. No primeiro caso, a possibilidade de pessoas antes invisibilizadas pelas estruturas opressoras de poder dividirem suas experiências e assumirem o pleno exercício da cidadania que a sociedade lhes refutou.

O lado negativo, orquestrado por líderes e algoritmos mal-intencionados, é o monopólio da narrativa de como o sujeito enxerga e conta as histórias, não necessariamente o que acontece e todo mundo vê. As imagens passam a ser as legendas dos discursos, e não o contrário; são adaptadas (ou manipuladas) de acordo com os interesses de quem os pronuncia e em nome do engajamento. Uma pessoa chegou a me escrever no último domingo, enquanto jorravam na TV as cenas do quebra-quebra: “Será que você não percebeu que é deep-fake (nota: criação de vídeos e áudios falsos por inteligência artificial)? Essas imagens estão sendo totalmente inventadas pela mídia”.

Não adianta rebater com ciência, levar a pessoa ao local, testemunhar os escombros. Ela se diz negra, mesmo sem um pingo de melanina, só para roubar o lugar de alguém no concurso; ela mente que vacina faz mal, absurdo que parecia desde 1904 tão superado; ela se diz patriota, enquanto joga a obra “Bandeira do Brasil”, de Jorge Eduardo, no chão inundado. Qualquer opinião tem para si força de lei, e assim nem a lei é respeitada, quando esta confronta uma opinião.

Não há divergência ou diálogo; apenas oponência e monólogos rasos, que, claro, descambam para a violência. Com um mundo cada vez mais virtual e metavérsico, tudo passa a ser relativo, sobretudo a realidade. Em meio a tantas tecnologias e mudanças que põem em xeque a sanidade intelectual, o Brasil precisa, com urgência, se lançar num projeto revolucionário e inédito em sua História, para construir narrativas saudáveis, retomar sua dignidade como nação, realfabetizar-se na democracia e garantir a integridade física, mental e social de seu povo. Ele se chama escola.

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