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quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Conselho para o novo ano: tenha bússola, mapa e espelho


Vê só a minha sorte de te encontrar, querida leitora e leitor, neste novo dia, neste primeiro dia de 2020. Não, eu não vou gastar meus primeiros escritos desta nova década com os imperialistas. Me recuso!
Quem tem a sorte de escrever e ser lido neste dia 1 tem a responsabilidade de escrever coisas boas e bonitas, que coloque esperança no coração de quem lê. Tô certa ou tô errada?
Neste momento eu quero que você se sinta como a Julie Andrews girando de braços abertos no topo de uma colina e cantando “The Sound of Music”, porque texto de primeiro de janeiro é para isso. Este texto é para que você olhe os próximos 366 dias de frente, de olhos aberto, de coração leve.
Como escreveu Rubem Braga em janeiro de 1952, “é singular que entre tantas festas religiosas e cívicas nenhuma chegue a ser tão emocionante e perturbe tanto a humanidade como esta, que é a Festa do Tempo. É como se todos estivéssemos fazendo anos juntos; é o Aniversário da Terra.”
Então tome este texto como meu presente, um presente como aquelas bonecas russas, que você abre e encontra outro, e outro, e outro. Tome como presente também um conselho para este ano, se é que a idade já me permite: tenha uma bússola, um mapa e um espelho. Saiba em que direção está indo, determine um ponto de partida e um ponto de chegada e leve algo valioso consigo, porque a vida é escambo.
Um dos privilégios de escrever em primeiro de janeiro é que todo mundo leva o seu conselho em consideração.
Ainda bem que meu texto não sai amanhã, porque amanhã sim, amanhã é dia 2, e se meu texto saísse amanhã talvez eu escrevesse sobre o absurdo do ataque terrorista à sede da produtora Porta dos Fundos. Que para mim nada mais é do que a materialização de um pensamento e de um projeto de ataque à cultura, que já vem de tempos.
Eu diria também que a intolerância não aumentou, não há agravamento, os intolerantes só estão mais corajosos e agora jogam bombas no Humaitá. Mas que as bombas, tiros e incêndios são comuns em tantas e tantas partes do Rio de Janeiro e do Brasil. A intolerância assola os terreiros da Baixada Fluminense há décadas. E a intolerância por lá não usa máscaras, não distorce a voz, muitas vezes veste farda e te olha nos olhos.
Eu me surpreendo com quem se surpreende, com quem acha que isso é uma onda. É nessas horas que eu percebo como as pessoas estão longe de perceber o que é o Brasil, o quão racistas e intolerantes nós somos. A seletividade da indignação, da dor, do medo de ser atingido. O aniversário é da Terra e não existe fora, não existe o outro. Essa onda na verdade é um grande tsunami e estamos todos na praia, pode demorar um pouco mais para que você se afogue, mas não se engane, não há colina suficientemente alta para subir.
Que Exu responda e que Xangô seja a nossa justiça, hoje e sempre. Amanhã você me faça o favor de sair para a rua com sangue nos olhos e fogo nas ventas, mas hoje é só primeiro de janeiro. Então, Feliz Ano Novo.

O Globo 1-Jan-2020 ANA PAULA LISBOA segundocaderno@oglobo.com.br

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