Bullying

sábado, 7 de março de 2020

O que se diz, o que se faz - O Globo 7 Mar 2020-ANDRÉA PACHÁ

Ainda não será amanhã que celebraremos, no Dia da Mulher, os ganhos na luta pela igualdade, pelo direito à saúde, à sexualidade e ao planejamento conjugal e familiar. Ao contrário, enterraremos mais 13 mulheres, cujos cadáveres se juntarão às 4.936 vítimas, mortas pela violência apenas no ano passado. Segundo o Atlas da Violência do Ipea, houve um aumento de 30,7% desse crime no Brasil, entre 2007 e 2017, e em 2019 chegou-se ao maior índice. Enquanto no Senado se aprovam 35 textos em prol dos direitos das mulheres, como a apreensão da arma de fogo do agressor, dentre outros, e na Câmara o número de projetos de combate à violência chega a 279, na vida real, mulheres seguem vítimas de ameaças, agressões e assédios, sob o beneplácito daqueles que deveriam zelar pelo respeito às leis. O direito mais básico à vida tem sido vilipendiado e, mesmo depois de dois anos, não se sabe quem mandou matar Marielle, cuja memória ainda é alvo de violência. O país, cada dia mais misógino, naturaliza a barbárie e ignora a Constituição. O desprezo pela densidade das palavras explica, em parte, a razão dessa perversa estatística. Não fosse tão abissal a distância entre o que se diz e o que se faz, viveríamos no melhor país do mundo. Na Constituição Federal estão reconhecidos o direito à igualdade entre homens e mulheres e o compromisso com o bem-estar de todos, sem preconceito ou discriminação, inclusive de gênero. A lei, contudo, não tem o condão de mudar a realidade e, a menos que seja compreendida simbolicamente, continuará reproduzida à exaustão, até que as palavras se gastem e se descolem dos significados, levando à descrença no sistema normativo e naturalizando a violência. Padrões sexistas e preconceitos não são alterados por lei, mas por uma educação que liberte e promova a dignidade. É pelo conhecimento, pela compreensão dos símbolos que nos humanizamos. Sem o valor simbólico, ignora-se a liberdade e sucateia-se a verdade.
Os ataques massivos desferidos contra Vera Magalhães, Patrícia Campos Mello e Mariliz Pereira Jorge, todas jornalistas e mulheres, classificados como inaceitáveis por todos os que compreendem o que seja um estado democrático de direito, foram os episódios mais recentes, dentre outros tantos episódios de ódio e misoginia que se alastram Inadmissível, inaceitável, insuportável, inacreditável, indigno, intolerável, irresponsável são adjetivos que temos repetido a cada segundo. São palavras que, sem a responsabilização dos agressores, correm o risco de se esvair, levando à apatia que paralisa. Não se deve transigir com a barbárie. Daí a importância da palavra e do fortalecimento das instituições garantidoras de direitos. Sem o Congresso livre, sem liberdade de imprensa e sem independência do Judiciário, marchamos para o caos.

Três dias antes de dar à luz, com o enxoval e o quarto prontos, Maria caiu e perdeu o bebê. Devastada pela dor inominável, recebeu a notícia de que o nome do filho não constava da certidão de óbito. Por ter morrido antes do parto, a criança era identificada como “natimorto”. Dez anos se passaram até que ela visse, no jornal, um caso parecido com o seu, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Procurou uma advogada, e na semana passada, a Justiça pernambucana garantiu a Maria o direito de nomear o filho perdido. A decisão acalentou e pacificou a mãe, que sempre quis fazer uma tatuagem com o nome de Gabriel, mas precisava, antes, de um registro que concretizasse simbolicamente a sua existência. Foi um possível final feliz, diante de tanta infelicidade. A juíza Andréa Epaminondas Tenório de Brito, autora da sensível sentença, me explica que foi uma decisão singela, que garantiu dignidade àquela família.

A história da obstinação de uma mulher, que por dez anos alimentou o desejo simbólico de dar um nome ao filho morto, é um contraponto de humanidade e afeto ao tempo indecente em que vivemos, no qual palavras não têm valor. Um exemplo digno de registro para celebrar o Dia Internacional da Mulher.

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