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sábado, 24 de maio de 2025

Aparecer para o outro COMPORTAMENTO | Na adolescência, percebe-se com mais intensidade o quanto a identidade e a autoimagem nascem do incessante jogo de ver e ser visto pelos outros

 

Aparecer para o outro
COMPORTAMENTO | Na adolescência, percebe-se com mais intensidade o quanto a identidade e a autoimagem nascem do incessante jogo de ver e ser visto pelos outros

Por Dulce Critelli, doutora em Psicologia da Educação, professora do Departamento de Filosofia da PUC-SP e terapeuta existencial

A adolescência deve ser o período de maior transformação que atravessamos. Época de inquietações e constrangimentos: já não somos mais quem fomos nem somos ainda quem poderemos ser. É próprio da condição humana habitar o vir-a-ser, habitar o entre o que não é mais e o que não é ainda — a isso que chamamos de presente. Esta, pois, nos parece sempre passado, pois nosso existir é temporal, mas é na adolescência que a transição se expõe de forma inequívoca e inexorável.

Temos de passar, mais do que apenas passar por ela.
Descobrimos um destino pessoal sob nossa responsabilidade. Inicia-se aí o desenvolvimento de nossa autoconsciência e singularização. Percebemo-nos indivíduos únicos, exclusivos, mas em preparação. Uma biografia em aberto.

O espelho em que o adolescente reconhece sua imagem está quebrado. O que de mais sólido o cerca não passa de expectativas: que ele tem para si mesmo e as que os outros têm para ele.

Ele não sabe a quais delas atender. Não viveu o bastante para ter uma história, um repertório de vivências e interpretações que o identifiquem ou habilitem para escolhas próprias. Seus projetos mais peculiares são riscos que só podem ser previstos quando apoiados na experiência e reflexão de outros. É a história dos outros que lhes pode dar alguma ideia de como seus projetos ressoarão.

O que torna estranha e perturbadora essa tarefa de singularização (individualização) é a vergonhosa evidência de nossa cultura de que o “eu” reside no nosso interior. Quanto mais o adolescente (como qualquer um) se procurar dentro de si, tanto menor a possibilidade de se encontrar e saber quem ele é. Isso porque o “eu” não é apenas singular, mas simultaneamente plural; porque o lugar do “eu” é fora, no mundo.

Somos plurais e singulares. Desde o nascimento, recebemos atributos que nos distinguem e tornam equivalentes aos outros. A primeira identidade é compartilhada: nome de família, nacionalidade, condição financeira, época, religião, cultura... O eu é o “nós”.

O adolescente é uma espécie de fusão dele mesmo com os outros. E, enquanto quer se diferenciar, se agrega ao grupo que tem as mesmas necessidades e objetivos existenciais, que o refletem.

Todo processo de crescimento e transformação que as pessoas experimentam recai na dinâmica de se distinguir de alguns e se assemelhar a outros. De um “nós” para outro “nós”. Nossa singularidade é tecida em meio à nossa pluralidade. É impossível ser o indivíduo que somos no isolamento.

Os modos de singularização não estancam no “nós”. Não são nossas intenções, desejos, ações e afetos que definem tudo. Há também o alcance e os efeitos do que os outros fazem de nós e conosco. Quem somos se revela na nossa biografia. Feita com nós, de nós, nada há além de nossos órgãos internos e nossas relações.

Entranhas. Alma e espírito são condições da existência do "eu", mas o "eu" mesmo está espalhado ao longo de sua história.

O que chamamos de intimidade é um vazio, um lugar nenhumas onde podemos estar a sós, duplicados, dois em um, numa relação que, desde Platão, conhecemos como o diálogo sem som do pensamento. É o máximo de interioridade que conseguimos.

Esse diálogo conosco, em pensamento, depende de que tenhamos arquivado na memória: a imagem que formamos de nós mesmos depende da memória de nossos feitos, palavras, sentimentos e sensações vividos na interação com os outros e com as coisas do nosso ambiente.

Esses feitos, discursos, sentimentos e sensações, quando se repetem nas múltiplas situações vividas, acabam por constituir nosso caráter e perfilar nossa identidade. A imagem que temos de nós é a memória, em síntese, de nosso acontecimento. Mas memória partilhada com outros. No entanto, ele não é abstrato. O eu que age e fala é corpo. O eu não atua através de um corpo, ele é corpo. O nosso eu mais profundo é o nosso corpo, lembra Merleau-Ponty.

O eu é tangível como corpo, tem um volume, uma fisionomia, tem tamanho, cor, cheiro, sabor, som. Nosso corpo tem um aspecto. E nosso caráter está moldado nele: no olhar doce ou frio, nos gestos bruscos ou delicados. E é através da imagem física, nossa semelhança, expressamos ou silenciamos nossos afetos e emoções.

O corpo é o nosso modo de aparecer no mundo. Somos aparência entre aparências. “Nada e ninguém existe nesse mundo cujo próprio ser não pressuponha um espectador (...) tudo que é, é próprio para ser percebido por alguém”, afirma Hannah Arendt. A condição de aparecer e ser visto que o corpo (assim como tudo o que consideramos real) tem, é algo de que, na articulação da vida cotidiana, esquecemos, mas que o adolescente percebe com intensidade. Ele vê que, antes de nós, são os outros que podem dizer “quem” somos.

A forma primária da autoconsciência no adolescente é de que seu eu aparece como corpo. Um corpo que está numa vertiginosa transformação, que é pouco conhecido e que já é testemunhado pelos outros. Um corpo que não se afirma em si, mas sim quando é visto pelos outros. Ser e aparecer para os outros, é ser colhido e escolhido. Essa compreensão é originariamente emocional, pois é aparecer para os outros o ponto de partida para a construção do olhar que se tem de si, que é o véu. Pelo que o outro vê. Daí as vergonhas dos adolescentes, sua timidez, agressividade, insegurança, exibicionismo, o interesse pelo sexo... Daí também serem tão zelosos da aparência: cabelo, roupas, acessórios, grife.

O cotidiano do adolescente é ser um corpo em meio a outros corpos, num incessante jogo de ver e ser visto. Antes de se ver ele é visto e o que os outros veem é a porta de acesso para o auto-olhar. Aí o lugar de constituição e sustentação da autoimagem. Nada que esteja dentro do indivíduo, mas fora, no mundo. 🔴

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