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terça-feira, 28 de abril de 2020

Sem passaporte para o futuro - O Globo - 28 Abril de 2020 - Margareth Dalcolmo Cientista e pneumologista da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz



Nesse outono de recuo histórico sob o qual olhamos o longínquo dezembro de 2019, há semanas falamos sobre o aprendizado de uma doença inteiramente nova e a avalanche de informação científica e leiga produzida em período tão curto. O mar então recuava, prenunciando as ondas em tsunami. Inapelavelmente.

Hoje, ainda inundados pela primeira onda e prevendo a segunda — que poderia ser até mais letal, como ocorreu na gripe espanhola no início do século passado —, nos vemos, o Brasil, correndo atrás do tempo e observando o cenário trágico da nossa obscena desigualdade social que a epidemia desnudou.

No enfrentamento diário da epidemia pela Covid-19, muitas publicações científicas, aprovadas sem o necessário rigor metodológico, viram verdades efêmeras, a não resistir a um olhar técnico experiente, provando que o desespero pode justificar ações heroicas, mas não definitivas. Nesse cadinho de notícia sem profusão sobre a sua magnitude, além de exercícios os mais variados de futurologia sobre o porvir, para nós médicos é um enorme alento cada alta dada a um paciente curado, se intensificando em nossos olhares de alívio as maiores interrogações contemporâneas, em direção ao futuro.

A cada dia, incorporamos um novo conhecimento sobre a doença e seu curso. O polimorfismo clínico é de uma doença infecciosa, altamente transmissível, marcada por reações inflamatórias e imunológicas, originalmente respiratória e que, na verdade, é sistêmica. Fazem parte desse arsenal de informação a comprovada alta frequência de infecção bacteriana secundária, além de complicações neurológicas tardias, cardiovasculares e hematológicas. Intrigantes, e sem resposta ainda, as evoluções abruptas da enfermidade, verificadas após a primeira semana de sintomas, e o número de mortes domiciliares, cuja gravidade não pode ser detectada a tempo, nem pela pessoa nem pelo serviço de saúde.

Estudos epidemiológicos de testagem sorológica em amostras de população têm por objetivo determinar o percentual de pessoas que estariam imunizadas no momento, para a cepa viral circulante. Sabe-se, entretanto, que para atingir essa imunidade comunitária ideal precisaríamos ter 60% da população produzindo anticorpos para o vírus, e os testes disponíveis até o momento não trazem essa efetividade. Com isso, nem o passaporte imunológico para o futuro imediato, como um valor de liberdade ou um indicador canônico de capital humano, pode ser expedido.

À guisa de nos reconciliar com um depois necessariamente novo, lembro Teilhard de Chardin, o grande jesuíta e filósofo. Após seus anos servindo no front francês, na Primeira Guerra Mundial, ele escreveu, em janeiro de 1918, curiosamente pouco antes da primeira onda da gripe espanhola:

“Será necessário que a humanidade, sob pena de perecer à deriva, se eleve à ideia de um esforço humano específico e integral. Após se deixar apenas viver por tão longo tempo, compreenderá que é chegada a hora de se revelar ela mesma, e fazer o seu caminho”. Nada mais atual.


Hoje, nos vemos correndo atrás do tempo e observando o cenário trágico que a epidemia desnudou, da nossa obscena desigualdade social.

Sem passaporte para o futuro


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