“Devolve nosso ouro” — a herança colonial e o destino da riqueza do Brasil Colônia
A frase “Devolve nosso ouro!”, frequentemente usada de forma irônica nas redes sociais, ecoa um sentimento histórico profundo: o de um país que viu sua imensa riqueza natural ser drenada para além-mar. Por trás da brincadeira está uma realidade que moldou a formação econômica, social e cultural do Brasil: a exploração mineral no período colonial e a transferência maciça de recursos para a Europa, especialmente Portugal e Inglaterra.
Durante o século XVIII, com as descobertas auríferas em Minas Gerais, o ouro tornou-se o principal produto da colônia portuguesa. Estima-se que, conforme o historiador Virgílio Noya Pinto, em sua obra O Ouro Brasileiro e o Comércio Anglo-Português, a produção total tenha alcançado 876.629 quilos. Já o geólogo Pandiaca Lógeras, incluindo a Bahia em seus cálculos, elevou o número para 948.105 quilos. Quantidades colossais que, segundo registros históricos, colocaram o Brasil como principal responsável pelo crescimento da produção mundial de ouro nas Américas, saltando de 39% no século XVI para 85% no XVIII.
Mas onde foi parar tamanha riqueza? O professor Leonardo Marques, da Universidade Federal Fluminense, explica que a Europa vivia à época uma escassez de metais preciosos, usados tanto como moeda quanto como base do crédito bancário nascente. O ouro brasileiro, portanto, chegava em um momento decisivo: sustentou a economia portuguesa e impulsionou o florescimento da economia britânica. Segundo Marques, “a mudança financeira britânica acaba sendo um motor da mineração no Brasil”.
De fato, o ouro que saía das minas de Minas Gerais financiou não apenas a opulência de Lisboa — como exemplifica o Palácio Nacional de Mafra, construído com recursos vindos da colônia —, mas também o desenvolvimento industrial da Inglaterra. Isso se explica, em parte, pelo Tratado de Methuen (1703), também conhecido como Tratado dos Panos e Vinhos, que consolidou uma relação desigual entre Portugal e Inglaterra: enquanto os portugueses exportavam vinhos e ouro, os ingleses vendiam produtos manufaturados. O geógrafo Wilhelm Ludwig von Eschweg, em Pluto Brasilienses, relatou que Portugal “cedeu seu ouro tão abundante em troca de mercadorias de luxo, continuamente substituídas por outras novas”.
O resultado foi que, segundo Noya Pinto, “os ingleses absorviam quase 60% do ouro somente com o comércio lícito”. Essa drenagem de riqueza, longe de gerar desenvolvimento interno em Portugal, acabou por retardar sua industrialização. Para alguns pesquisadores, o ouro representou uma “maldição”, que mascarou a ausência de políticas de modernização e manteve o país dependente de produtos estrangeiros.
Enquanto isso, no Brasil, o ciclo do ouro transformou radicalmente o território: deslocou o eixo econômico do litoral para o interior, fomentou a urbanização em vilas como Ouro Preto e Mariana, e impulsionou a ocupação do Centro-Sul. No entanto, também intensificou o tráfico de africanos escravizados, que saltou de 910 mil no século XVII para 2,2 milhões no século XVIII, conforme dados do Slave Voyages Database.
Esses impactos humanos e ambientais foram profundos. Como destaca Leonardo Marques, os efeitos da mineração “são sentidos no Brasil, não em Portugal ou na Grã-Bretanha”. A exploração deixou marcas de destruição ambiental, estruturou uma sociedade rigidamente hierarquizada e sustentou o modelo escravista — pilares de uma desigualdade que atravessa os séculos.
A história do ouro brasileiro, portanto, é a história de um país que se tornou fornecedor de matérias-primas para o enriquecimento europeu. O metal que reluzia nas igrejas barrocas e nas coroas europeias custou vidas, devastou paisagens e estruturou dependências econômicas que perduram até hoje.
Assim, quando ecoa nas redes o grito bem-humorado “Devolve nosso ouro!”, ele carrega, na verdade, uma crítica poderosa: a lembrança de que o saque colonial não terminou — apenas mudou de forma. A herança desse passado segue viva na desigualdade social, na concentração de renda e na permanência de um modelo econômico que ainda exporta riqueza e importa dependência.
📜 Referências citadas:
Referências
ESCHWEG, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasilienses: Relação histórica e geográfica das minas do Brasil. Tradução de Domício Proença Filho. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1979.
LÓGERAS, Pandiaca. Estudos sobre a produção de ouro no Brasil colonial. Lisboa: Tipografia Nacional, 1908.
MARQUES, Leonardo. Estudos sobre a América Colonial. Niterói: Universidade Federal Fluminense, Departamento de História, 2020.
PINTO, Virgílio Noya. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português: uma contribuição ao estudo das relações econômicas de Portugal e Grã-Bretanha no século XVIII. 3. ed. São Paulo: Nacional, 1979.
SLAVE VOYAGES. Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em: https://www.slavevoyages.org/. Acesso em: 8 nov. 2025.
TAVARES, Victor. “Devolve nosso ouro”: o destino da riqueza do Brasil Colônia. [Vídeo]. BBC News Brasil, 8 nov. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/ciclo-do-ouro. Acesso em: 8 nov. 2025.













