O tempo adiado
Vêm aí dias piores.O tempo adiado até nova ordem
surge no horizonte.
Em breve deves amarrar os sapatos
e espantar os cães para os charcos.
Pois as vísceras dos peixes
esfriaram no vento.
A luz da anileira arde pobremente.
Teu olhar pressente a penumbra:
o tempo adiado até nova ordem
desponta no horizonte.
Do outro lado afunda tua amada na areia,
ele sobe-lhe pelo cabelo esvoaçante,
ele corta-lhe a palavra,
ele ordena-lhe silêncio,
ele encontra-a mortal
e pronta para a despedida
depois de cada abraço.
Não olha para trás.
Amarra teus sapatos.
Espanta os cães.
Joga os peixes ao mar.
Anula a anileira!
Vêm aí dias piores.
Todos os dias
A guerra não é mais declarada,mas mantida. O inaudito
tornou-se ordinário. O herói
fica longe das lutas. O fraco
é deslocado para as zonas de combate.
O uniforme do dia é a paciência,
a condecoração, a pobre estrela
da esperança sobre o coração.
Ela é entregue,
quando nada mais acontece,
quando o fogo cerrado emudece,
quando o inimigo se tornou invisível
e a sombra do eterno armamento
cobre o céu.
Ela é entregue
pela fuga diante das bandeiras
pela valentia diante do amigo,
pela traição de segredos indignos
e a não obediência
de toda ordem.
Enigma
Para Hans Werner Henzeda época dos Ariosi
Nada mais vai chegar.
A primavera não virá mais.
Assim nos antecipam calendários milenares.
Mas também o verão —e tudo o que tem nomes tão bons
quanto “veraneio”—
nada mais vai chegar.
E não hás de chorar por isso,
diz a música.
Nada
mais
foi
dito.
Fonte: Ilustríssima - Folha de São Paulo 29-12-2019
Ingeborg Bachmann, escritora austríaca (1926-73), alcançou fama como poeta já na estreia, com "Die Gestundete Zeit" ("O Tempo Adiado"), de 1953; foi também prosadora, dramaturga e roteirista.
Tradução de Claudia Cavalcanti, germanista formada em Leipzig, editora e tradutora, organizou e traduziu edições de poemas de Georg Trakl e Paul Celan (ambos pela Iluminuras).
Ilustração de Marcos Garuti, artista visual e ilustrador.
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