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terça-feira, 21 de abril de 2020

O novo, sem profecia - O Globo 21 de Abril de 2020 - A HORA DA CIÊNCIA - Margareth Dalcolmo - Cientista e pneumologista da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz


No momento em que todos, cada um a seu modo e na exigência de seu intelecto, discutem o que seria a nova normalidade após a pandemia, nos sentimos assolados por esse desconhecido “novo”, pelo desafio ainda longe de solução, pelo excesso de informação, por vezes tóxico, e observamos as diferenças e inquietudes sobre o que e como será a vida, o cotidiano depois. Em meio a tantas incertezas, uma certeza: o homem, o planeta, sua competitividade, seus padrões de consumo e dogmas precisarão encontrar uma relação de outra qualidade.
Nunca, em tal exíguo tempo, todas as categorias profissionais, não apenas os cientistas, pesquisadores e médicos, tiveram tão pouco tempo para a perplexidade, e de pronto canalizaram seus melhores esforços, na busca incessante de respostas sobre a história natural, a biologia do vírus, a patogenia e possíveis tratamentos. Agências regulatórias e comitês de ética trabalham em regime de urgência todos os dias, inclusive no Brasil, com o cuidado de, diante da premência e do tamanho da tragédia, minimizar o improviso e as medidas sem a necessária sustentação científica para aplicação in anima nobili. Até o momento fica claro que obter uma vacina capaz de prover a imunidade de rebanho e prevenir o vírus e suas mutantes, que certamente ocorrerão, é o objetivo maior.
Há, entretanto, vidas a salvar agora, e tem sido exaustivamente alertado que a arma mais poderosa é o distanciamento social, ou o “fique em casa”, que já deveria ter sido incorporado ao saber popular. Sabe-se que a maior causa da morbidade em pessoas infectadas pelo SarsCoV-2, como na epidemia de Mers-Cov, há alguns anos, é a síndrome de liberação de citocinas, ou tempestade imunológica, resultando em falência respiratória e um cortejo de fenômenos, com desfechos clínicos graves, ou morte. Evitar que cheguem muitas pessoas a esse ponto, exaurindo a estrutura de saúde, é estratégico, especialmente neste momento da disseminação em que estamos. E fazer do grande número de curados uma permanente inspiração.
Meu amigo Régis Debray, em conversa recente, disse em sua agudeza que “as crises são impudicas, no que desnudam os reis e passam as sociedades num raio-X, lhes revelando o espírito”. É fato, e lembrávamos que um dos maiores legados da peste negra (1347) foi a destruição do frágil sistema médico, centrado nos conceitos de Hipócrates, Galeno e Avicena, porém rígido e hermético na prática. Médicos todos homens e muitos ligados ao clero. Naquele momento a resposta exigida das novas gerações resultou em mudanças que levaram à medicina clínica do século XVII em diante. Num divisor de águas histórico, levaram sobretudo ao Renascimento. O grande Petrarca, ao descrever a primeira peste, disse: “feliz a posteridade que não experimentou esse abismo e que olhará o nosso testemunho como se fosse uma fábula”.
Nesse panorama teórico e prático do nosso tempo, espécie de iluminismo do verdadeiro início do século XXI, sem profecias, acreditamos numa conjunção humanista de nova natureza e no conhecimento e sua disseminação capilar e mais democrática, mantendo a centralidade da pessoa como quem deverá comandar o porvir após a pandemia.
Em meio a tantas incertezas, uma certeza: o homem precisará encontrar uma relação de outra qualidade.

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